Mobilidade segundo Zygmunt Bauman

GLOBALIZAÇÃO: As consequências humanas. De Zygmunt Bauman


Ed.jorge Zahar, Rio de Janeiro 1999
Síntese: Pe Paolo Cugini (p.cugini@yahoo.com.br)
Digitação: Carine Almeida Souza
TEMPO E CLASSE
     No mundo do pós-guerra espacial, a mobilidade tornou-se o fator de estratificação mais poderoso e mais cobiçado, a matéria de que são feitas e refeitas diariamente as novas hierarquias sociais, políticas, econômicas e culturais em escala cada vez mais mundial. (p. 16)
     A mobilidade adquirida por “pessoas que investem” – aquelas com capital, com o dinheiro necessário para investir – significa uma nova desconexão do poder face a obrigações, com efeito uma desconexão sem precedentes na sua radical incondicionalidade: obrigações com os empregados, mas também com os jovens e fracos, com as gerações futuras e com a autoreprodução das condições gerais de vida; em suma, liberdade face ao dever de contribuir para a vida cotidiana e a perpetuação da comunidade. Surge uma nova assimetria entre a natureza extraterritorial do poder e a contínua territorialidade da “vida como um tudo” – assimetria que o poder agora desarraigado, capaz de se mudar de repente ou sem aviso, é livre para explorar e abandonar às consequências é o ganho mais cobiçado e ansiado que a nova mobilidade propicia ao capital sem amarras locais, que flutua livremente. Os custos de se arcar com as consequências não precisam agora ser contabilizados no cálculo da “eficácia” do investimento. (p. 16 e 17)
     Paul Virilio disse recentemente que, se parece bastante prematura a declaração de Francis Fukuyama sobre o “fim da história”, pode-se cada vez com mais confiança falar atualmente do “fim da geografia”. As distâncias já não importam, ao passo que a ideia de uma fronteira geográfica é cada vez mais difícil de sustentar no “mundo real”. Parece claro de repente que as divisões dos continentes e do globo como um todo foram função das distâncias, outrora impositivamente reais devido aos transportes primitivos e às dificuldades de viagem. (p. 19)
     A oposição entre “dentro” e “fora”, “aqui” e “lá”, “perto” e “longe” registrou o grau de domesticação e familiaridade de vários fragmentos (tanto humanos como não humanos) do mundo circundante.
     Próximo, acessível é, primariamente, o que é usual, familiar e conhecido até a obviedade, algo ou alguém que se vê, que se encontra, com que se lida ou interage diariamente, entrelaçado à rotina e atividades cotidianas. “Próximo” é um espaço dentro do qual a pessoa pode-se sentir chez soi, à vontade, um espaço no qual raramente, se é que alguma vez, a gente se sente perdido, sem saber o que dizer ou fazer. “longe”, por outro lado, é um espaço que se penetra apenas ocasionalmente ou nunca, no qual as coisas que acontecem não podem ser previstas ou compreendidas e diante das quais não se saberia como reagir: um espaço que contém coisas sobre as quais pouco se sabe, das quais pouco se separa e de que não nos sentimos obrigados a cuidar. Encontrar-se num espaço “longínquo” é uma experiência enervante; aventurar-se para “longe” significa estar além do próprio alcance, deslocado, fora do próprio elemento, atraindo problemas e temendo o perigo.
     Devido a todos esses aspectos, a oposição “longe-perto” tem mais uma dimensão crucial: aquela entre a certeza e a incerteza, a autoconfiança e a hesitação. Estar “longe” significa estar com problemas – o que exige esperteza, astúcia, manha ou coragem, o aprendizado de regras estranhas que se podem dispensar alhures e o seu domínio sob desafios arriscados e cometendo erros que muitas vezes custam caro. A ideia de “perto”, por outro lado, representa o que não é problemático; hábitos adquiridos sem sofrimento darão conta do recado e, uma vez que são hábitos, parecem não pesar, não exigir qualquer esforço, não dar margem à ansiosa hesitação. Seja o que for que se conheça como “comunidade local”, foi algo que surgiu dessa oposição entre “aqui” e “acolá”, “longe” e “perto”. (p. 20 e 21)
     No ciberespaço, os corpos não interessam – embora o ciberespaço interesse, de forma decisiva e inexorável, para a vida dos corpos. Não há apelação conta os vereditos baixados no paraíso ciberespacial e nada que aconteça na terra pode questionar sua autoridade. Com o poder de baixar vereditos investido com segurança no ciberespaço, os corpos dos poderosos não precisam ser corpos poderosos nem precisam se armar de pesadas armas materiais; mais do que isso, ao contrário de Anteu, não precisam de nenhuma ligação com seu ambiente terrestre para afirmar, fundar ou manifestar o seu poder. O que eles precisam é isolar-se da localidade, agora despojada de significado social, transplantada para o ciberespaço, e assim reduzida a terreno meramente “físico”. Precisam também da segurança desse isolamento – uma condição de “não vizinhança”, de imunidade face a interferências locais, um isolamento garantido, invulnerável, traduzido como “segurança” das pessoas, de seus lares e playgrounds. A desterritorialização do poder ainda de mãos dadas, portanto, com a estruturação cada vez mais estrita do território. (p. 27)
GERRAS ESPACIAIS: INFORME DE CARREIRA
     A caótica e desnorteante diversidade pré moderna de mapas deveria portanto ser substituída não tanto por uma imagem do mundo universalmente partilhada, mas por uma estrita hierarquia de imagens. Teoricamente, o “objetivo” significava primeiro e antes de mais nada “superior”, enquanto sua superioridade prática continuava sendo o estado ideal de coisas que os poderes modernos ainda deveriam alcançar – e que, uma vez alcançado, se tornaria um dos principais recursos desses poderes.
     Territórios inteiramente domesticados, inteiramente familiares e inteligíveis para os propósitos das atividades cotidianas dos aldeões ou paroquianos permaneciam confusa e ameaçadoramente estranhos, inacessíveis e indomados para as autoridades centrais; a reversão dessa relação foi um dos principais indícios e dimensões do “processo modernizador”.
     A legibilidade e transparência do espaço, consideradas nos tempos modernos a característica diferencial da ordem racional, não foram, enquanto tais, invenções modernas; afinal, em todos os tempos e lugares foram condições indispensáveis da coexistência humana, oferecendo a quantidade módica de certeza e autoconfiança sem a qual a vida diária era simplesmente impensável. A única novidade moderna foi situar a transparência e a legibilidade como um objetivo a ser sistematicamente perseguido – como uma tarefa, algo que ainda precisa ser imposto à realidade recalcitrante, tendo sido primeiro delineado com a ajuda de especialistas. Modernização significava, entre outras coisas, tornar o mundo habitado receptivo à administração supracomunitária, estatal; e essa tarefa requeria, como condição necessária, tornar o mundo transparente e legível para os poderes administrativos. (p. 39 e 40)
     Para os experimentalistas mais interessados num trabalho benfeito do que nos efeitos sobre aqueles que seriam afetados por suas ações, Brasília foi um imenso laboratório com pródigo financiamento no qual vários ingredientes de lógica e estética podiam ser misturados em variadas proporções, observando-se então as reações de forma não adulterada e selecionando-se a composição mais agradável. Como sugeriam as pressuposições do estilo Le Corbusier de modernismo arquitetônico, podia-se desenhar em Brasília um espaço na medida do homem (ou, para ser mais exato, de tudo o que é mensurável no homem), portanto um espaço do qual a surpresa e o acidente fossem eliminados e ao qual não pudessem voltar. Para seus moradores, porém, Brasília revelou-se um pesadelo. Logo foi cunhado por suas infelizes vítimas o conceito de “brasilite”, nova síndrome patológica de que Brasília era o protótipo e o mais famoso epicentro até então. Os sintomas mais notáveis de “brasilite”, na opinião geral, eram a ausência de multidões e ajuntamentos, as esquinas vazias, o anonimato dos lugares, as figuras humanas sem rosto e a entorpecente monotonia de um ambiente desprovido de qualquer coisa que intrigasse, excitasse ou causasse perplexidade. O plano de Brasília eliminava a possibilidade de encontros fortuitos em quaisquer lugares que não os poucos especificamente destinados a reuniões com um propósito. Marcar um encontro no único “fórum” projetado, a enorme Praça dos três Poderes era o mesmo, segundo uma piada corrente, que marcar um encontro no deserto de Gobi.
     Brasília era, talvez, um espaço perfeitamente estruturado para a instalação de homúnculos nascidos e alimentados em tubos de ensaio, para criaturas compostas de tarefas administrativas e definições legais. Era certamente (pela menos na intenção) um espaço perfeitamente transparente para aqueles encarregados da tarefa de administrar e para aqueles encarregados da tarefa de administrar e para aqueles que definiam o conteúdo dessa tarefa. Com certeza, podia ser um espaço perfeitamente estruturado também para os residentes ideais e imaginários que identificassem a felicidade com uma vida sem problemas, uma vez que não comportava situações ambivalentes, nenhuma necessidade de escolha, nenhuma ameaça de risco ou possibilidade de aventura. Para todos os demais revelou-se um espaço desprovido de tudo o que é verdadeiramente humano – tudo o que dá sentido à vida e faz valer a pena viver.
     Poucos urbanistas consumidos pela paixão modernizadora tiveram um campo tão vasto de ação como o que se ofereceu à imaginação de Niemeyer. A maioria teve que limitar seus vôos de fantasia (embora não sua ambição) a experiências em pequena escala no espaço urbano: endireitando ou cercando aqui e ali o caos descuidado e fátuo da vida da cidade, corrigindo um ou outro erro ou omissão da história, enfiando um nichozinho de ordem bem protegido no universo existente do acaso – mas sempre com consequências igualmente limitadas, longe de abrangentes e em grande parte imprevisíveis. (p. 51, 52 e 53)
     A experiência das cidades americanas analisadas por Sennett aponta para uma regularidade quase universal: a suspeita em relação aos outros, a intolerância face à diferença, o ressentimento com estranhos e a exigência de isolá-los e bani-los, assim como a preocupação histérica, paranóica com a “lei e a ordem”, tudo isso tende a atingir o mais alto grau nas comunidades locais mais uniformes, mais segregadas dos pontos de vista racial, étnico e de classe.
     Não admira que nessas localidades o apoio ao sentimento de grupo tende a ser procurado na ilusão da igualdade, garantida pela monótona similaridade de todos dentro do campo visual. A garantia de segurança tende a se configurar na ausência de vizinhos com pensamentos, atitudes e aparência diferentes. A uniformidade alimenta a conformidade e a outra face da conformidade é a intolerância. Numa localidade homogênea é extremamente difícil adquirir as qualidades de caráter e habilidades necessárias para lidar com a diferença humana e situações de incerteza; e na ausência dessas habilidades e qualidades é facílimo temer o outro, simplesmente por ser outro – talvez bizarro e diferente, mas primeiro e sobretudo não familiar, não imediatamente compreensível, não inteiramente sondado, imprevisível.
     A cidade, construída originalmente em nome da segurança, para proteger de invasores mal intencionados os que moram intramuros, tornou-se em nossa época “associada mais com o perigo do que com a segurança”, diz Nan Elin. Nos nossos tempos pós-modernos, “o fator medo certamente aumentou, como indicam o aumento dos carros fechados, das portas de casa e dos sistemas de segurança, a popularidade das comunidades ‘fechadas’ e ‘seguras’ em todas as faixas de idade e de renda e a crescente vigilância nos espaços públicos, para não falar nas intermináveis reportagens sobre perigo que aparecem nos veículos de comunicação de massa”.
     Os medos contemporâneos, os “medos urbanos” típicos, ao contrário daqueles que outrora levaram à construção de cidades, concentram-se no “inimigo inferior”. Esse tipo de medo provoca menos preocupação com a integridade e a fortaleza da cidade como um todo – como propriedade coletiva e garante coletivo da segurança individual – do que com o isolamento e a fortificação do próprio lar dentro da cidade. Os muros construídos outrora em volta da cidade cruzam agora a própria cidade em inúmeras direções. Bairros vigiados, espaços públicos com proteção cerrada e admissão controlada, guardas bem armados no portão dos condomínios e portas operadas eletronicamente – tudo isso para afastar concidadãos indesejados, não exércitos estrangeiros, salteadores de estrada, saqueadores ou outros perigos desconhecidos emboscados extramuros. (p. 54 e 55)
DEPOIS DA NAÇÃO-ESTADO, O QUÊ?
    Com a velocidade geral de movimento ganhando impulso – com a “compressão” de tempo/espaço enquanto tais, como assinala David Harvey – alguns objetos movem-se mais rápido que outros. “A economia” – o capital, que significa dinheiro e outros recursos necessários para fazer as coisas, para fazer mais dinheiro e mais coisas – move-se rápido; rápido o bastante para se manter permanentemente um passo adiante de qualquer Estado (territorial, como sempre) que possa tentar conter e redirecionar suas viagens. Neste caso, pelo menos, a redução do tempo de viagem a zero produz uma nova qualidade: uma total aniquilação das restrições espaciais, ou melhor, a total “superação da gravidade”. O que quer que se mova a uma velocidade aproximada à do sinal eletrônico é praticamente livre de restrições relacionadas ao território de onde partiu, ao qual se dirige ou que atravessa. (p. 63)
     Num mundo em que o capital não tem domicílio fixo e os fluxos financeiros estão bem além do controle dos governos nacionais, muitas das alavancas da política econômica não mais funcionam.” (p. 64)
     Ao longo de toda a era moderna nos acostumamos com a ideia de que a ordem é equivalente a “estar no controle”. É dessa suposição – quer bem fundada ou meramente ilusória – de “estar no controle” que mais sentimos falta.
      A “nova desordem mundial” dos dias de hoje não pode ser explicada meramente pela circunstância que constitui a razão mais óbvia e imediata da sensação de pasmo e perplexidade: a saber, a confusão de “dia seguinte” produzida pelo fim ab-rupto do Grande Cisma e o súbito colapso da rotina política dos blocos de poder – mesmo que tenha sido esse colapso que deu o alerta da “nova ordem”. (p. 65)
     Esta nova e desconfortável percepção das “coisas fugindo ao controle” é que foi articulada (com pouco benefício para a clareza intelectual) num conceito atualmente na moda: o de globalização. O significado mais profundo transmitido pela ideia da globalização é o do caráter indeterminado, indisciplinado e de autopropulsão dos assuntos mundiais: a ausência de um centro, de um painel de controle, de uma comissão diretora, de um gabinete administrativo. A globalização é a “nova desordem mundial” de Jowitt com um outro nome. (p. 66 e 67)
     A tarefa de produzir a ordem requer imensos e contínuos esforços para depurar, transferir e condensar o poder social, o que por sua vez exige recursos consideráveis que somente o Estado, na forma de um aparelho burocrático hierárquico, é capaz de reunir, concentrar e usar. (p. 69)
     Nas palavras de John Kavanagh, do Instituto de pesquisa política de Washington, a globalização deu mais oportunidade aos extremamente ricos de ganhar dinheiro mais rápido. Esses indivíduos utilizam a mais recente tecnologia para movimentar largas somas de dinheiro mundo afora com extrema rapidez e especular com eficiência cada vez maior.
     Infelizmente, a tecnologia não causa impacto nas vidas dos pobres do mundo. De fato, a globalização é um paradoxo: é muito benéfica para muito poucos, mas deixa de fora ou marginaliza dois terços da população mundial.
     Como rezaria o folclore da nova geração de “classes esclarecidas” geradas no admirável novo mundo monetarista do capital nômade, abrir represas e dinamitar todos os diques mantidos pelo estado fará do mundo um lugar livre para todos. Segundo essas crenças folclóricas, a liberdade (de comércio e a mobilidade de capital, antes e acima de tudo) é a estufa na qual a riqueza cresceria mais rápido do que nunca; e uma vez multiplicada a riqueza, haverá mais para todos. (p. 79)
     A mentira da promessa do livre comércio é bem encoberta; a conexão entre a crescente miséria e desespero dos muitos “imobilizados” e as novas liberdades dos poucos com mobilidade é difícil de perceber nos informes sobre as regiões lançadas na ponta sofredora da “globalização”. Parece, ao contrário, que os dois fenômenos pertencem a mundos diferentes, cada um com suas próprias causas marcadamente diversas. Jamais se suspeitaria pelos informes que o rápido enriquecimento e o rápido empobrecimento brotam da mesma raiz, que a “imobilidade” dos miseráveis é um resultado tão legítimo das pressões “globalizantes” quanto as novas liberdades dos bem-sucedidos para os quais o céu é o limite (como jamais se suspeitaria pelas análises sociológicas do Holocausto e de outros genocídios que eles “combinam” perfeitamente com a sociedade moderna, assim como o progresso econômico, tecnológico, científico e do padrão de vida). (p. 80)
     O desejo dos famintos de ir para onde a comida é abundante é o que naturalmente se esperaria de seres humanos racionais; deixar quem ajam de acordo com esse desejo é também o que parece correto e moral à consciência. É por sua inegável racionalidade e correção ética que o mundo racional e eticamente consciente se sente tão desanimado ante a perspectiva da migração em massa dos pobres e famintos; é tão difícil de ir onde há abundância de comida; e é virtualmente impossível propor argumentos racionais convincentes provocando que a migração seria para eles uma decisão irracional. O desafio é realmente espantoso: negar aos outros o mesmíssimo direito à liberdade de movimento que se elogia como a máxima realização do mundo globalizante e a garantia de sua crescente prosperidade...
     As imagens de desumanidade que dominam as terras onde vivem possíveis migrantes vêm portanto a calhar. Elas reforçam a determinação que não dispõe de argumentos éticos e racionais a apoiá-la. Ajudam os habitantes locais a permanecerem locais, ao mesmo tempo que permitem aos globais viajar com a consciência limpa. (p. 84)
LEI GLOBAL, ORDENS LOCAIS
     O mercado de trabalho é rígido demais; precisa tornar-se flexível, quer dizer, mais dócil e maleável, fácil de moldar, cortar e enrolar, sem oferecer resistência ao que quer que se faça ele. Em outras palavras, o trabalho é “flexível” na medida em que se torna uma espécie de variável econômica que os investidores podem desconsiderar, certos de que serão as suas ações e somente elas que determinarão a conduta da mão de obra. Para pensar isso, porém, a ideia do “trabalho flexível” nega na prática o que afirma em teoria. Ou melhor, para realizar o que postula, deve despojar o seu objeto daquela agilidade e versatilidade que o exorta a adotar. (p. 112)
     Resumindo: fossem quais fossem seus outros propósitos imediatos, as casas panópticas de confinamento eram antes e acima de tudo fábricas de trabalho disciplinado. O mais comum era serem também soluções instantâneas para aquela tarefa suprema – colocavam os internos imediatamente para trabalhar e em especial nos tipos de trabalho menos desejados pelos “trabalhadores livres” e que era menos provável executarem por livre e espontânea vontade, por mais atraentes que fossem as recompensas prometidas. Fosse qual fosse o seu propósito declarado a longo prazo, as instituições panópticas eram francamente, na maioria, casas de trabalho.* (p. 117 e 118)
     Cresce rapidamente em quase todos os países o número de pessoas na prisão ou que esperam prováveis sentenças de prisão. Em quase toda parte a rede de prisões está se ampliando intensamente. Os gastos orçamentários do Estado com as “forças da lei e da ordem”, principalmente os efetivos policiais e os serviços penitenciários, crescem em todo o planeta. Mais importante, a proporção da população em conflito direto com a lei e sujeita à prisão cresce num ritmo que indica uma mudança mais que meramente quantitativa e sugere uma “significação muito ampliada da solução institucional como componente da política criminal” - e assinala, além disso, que muitos governos alimentam a pressuposição, que goza de amplo apoio na opinião pública, segundo a qual “há uma crescente necessidade de disciplinar importantes grupos e segmentos populacionais”. (p. 122)
     Para compreender plenamente essa notável “transferência de ansiedade” é preciso reunir o que a linguagem separou com seu zelo por vezes excessivo de dividir e circunscrever. A unidade emoção/atitude subjacente às experiências supostamente distintas por serem linguisticamente separadas, experiências de segurança e garantia e certeza, é difícil de detectar para os anglófonos mas muito melhor apreendida pelos germanófonos graças à rara frugalidade de sua língua: a palavra alemã Sicherheit capta todas as três experiências (de segurança, garantia e certeza) e assim recusa aceita sua mútua autonomia que os anglófonos são linguisticamente treinados a tomar por certa.
     Se a Freiheit [liberdade] foi tornada vulnerável pela busca moderna inicial de segurança, garantia e certeza da ordem, a Sicherheit é a vítima fundamental do curso tomado pela liberdade individual no estágio final da modernidade. E uma vez que dificilmente seríamos capazes de distinguir os três tipos de mal-estar não fosse pelas três palavras que sugerem três objetos semânticos, não admira que a escassez de opções livres de riscos, isto é, seguras, e a crescente falta de clareza das regras do jogo que torna incerta a maioria dos movimentos e ainda mais as consequências dos movimentos sejam sentidas como ameaças à segurança – primeiro ao corpo e depois à propriedade, extensão espacial do corpo. Num mundo cada vez mais inseguro e incerto, a retirada para o porto seguro da territorialidade é uma intensa tentação; e assim a defesa do território – o “lar seguro” - torna-se a chave para todas as portas que se considere necessário fechar para afastar a trilha ameaça ao conforto espiritual e material.
     Um bocado de tensão acumula-se em torno da busca de segurança. E onde há tensão os investidores espertos e os corretores competentes com certeza reconhecerão um capital político. Apelos a medos relacionados à segurança estão verdadeiramente acima das classes e partidos, como os próprios medos. É talvez uma feliz coincidência para os operadores políticos e os esperançosos que os autênticos problemas de segurança e incerteza se tenham condensado na angústia acerca da segurança; pode-se supor que os políticos estejam fazendo algo acerca dos primeiros exatamente por vociferarem sobre esta última.
     Uma feliz coincidência com efeito, uma vez que as preocupações são de fato intratáveis. Os governos não podem seriamente prometer nada exceto “flexibilidade de mão de obra” – isto é, em última análise, mais insegurança e cada vez mais penosa e incapacitante. Os governos sérios não podem também prometer certeza; é quase universalmente considerada uma conclusão definitiva que eles devem conceder liberdade a “forças de mercado” notoriamente erráticas imprevisíveis, as quais, tendo conquistado a extraterritorialidade, estão muito além do alcance de qualquer coisa que os impotentes governos “locais” podem fazer. Fazer algo ou ser tido como fazendo é, no entanto, uma opção realista – uma opção com potencial eleitoral. A Sicherheit puco ganhará com isso, mas as fileiras de eleitores incharão. (p. 125 e 126)
     A existência atual estende-se ao longo da hierarquia do global e do local, com a liberdade global de movimentos indicando promoção social, progresso e sucesso, e a imobilidade exalando o odor repugnante da derrota, da vida fracassada e do atraso. Cada vez mais, a globalidade e a localidade adquirem o caráter de valores opostos (e valores supremos por sinal), valores intensamente cobiçados ou invejados e situados no centro mesmo dos sonhos de vida, dos seus pesadelos e batalhas. As ambições da vida são comumente expressas em termos de mobilidade, da livre escolha de lugar, da viagem, de ver o mundo, os medos da vida, ao contrário, são expressos no confinamento, na falta de mudança, no impedimento de acesso a locais que os outros facilmente freqüentam, exploram e desfrutam. A “boa vida” é a vida em movimento, mais precisamente o conforto de ter confiança na facilidade com que é possível mover-se caso ficar não mais satisfaça. Liberdade veio a significar acima de tudo liberdade de opção, e a opção adquiriu notoriamente uma dimensão espacial.
     Na era da compreensão espaço-temporal, tantas sensações maravilhosas e desconhecidas acenam ao longe que a casa, o “lar”, embora sempre atraente, tende a ser desfrutado mais pela doce – amara emoção da saudade. Na sua sólida materialidade de tijolo e cimento, a “casa” alimenta o ressentimento e a rebelião. Se fechada ao exterior, se sair é uma perspectiva distante ou inexistente, a casa se torna uma prisão. A imobilidade forçada, a condição de estar preso a um lugar, sem permissão de se mudar para parte alguma, parece abominável, cruel e repulsiva; é a proibição de movimento, mais do que a frustração de um efetivo desejo de mudar, que torna essa situação especialmente ofensiva. Estar proibido de mover-se é um símbolo poderosíssimo de impotência, de incapacidade e dor. (p. 129 e 130)

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