Porto de Vitória versus catraeiros em 2012



Os catraeiros conduzem as catraias ‑ pequenas embarcações – transportando passageiros e mercadorias de pequeno porte. Eles estão na Baia de Vitória desde a colonização portuguesa convivendo com um porto virtual que se consolida a partir dos anos de 1920. Há noticia que nos anos de 1630 o “porto” era um sucesso no transporte da produção de açúcar dos cristãos novos estabelecidos no Espírito Santo. Essa intensa atividade portuária não durou muito. Sabe-se que no tempo da província vários tipos de embarcação: canoas, escaleres e sumacas e ancoradouros espalhados na orla da baia asseguravam a sobrevivência da pequena produção agrícola e de outros gêneros comerciáveis da “Grande Vitória”. Os catraeiros estavam na base dessa sobrevivência.
Anos 1920, início da construção do Porto de Vitória, Foto DAU/Ufes

O transporte hidroviário consistia na única forma de translado entre Vila Velha, Cariacica, Vitória, inclusive das viagens pelos Rios Jucu e Santa Maria. De acordo com relatos dos antigos habitantes e viajantes era intensa a circulação da população e de mercadorias através da Baia de Vitória. Com a inauguração da Estação Ferroviária Leopoldina em 1895 e da Estação Pedro Nolasco em 1905 foram os catraeiros que conduziram passageiros e suas bagagens.

Cais do Imperador em 1909, ref. Biblioteca Central
O Cais do Imperador alinhado à escadaria do Palácio Anchieta era um dos pontos de embarque e desembarque de passageiros mais movimentados; hoje faz parte do cais comercial.
Catraeiros atuando na área da estação ferroviária Leopoldina. Fpto de E. D'Oliver. ref. IPHAN, Século XIX

A inclusão do Espírito Santo no mapa do desenvolvimento brasileiro ocorreu lentamente. A infra-estrutura que alavancou esse progresso deveu-se à institucionalização do porto de Vitória em 1906, a sua modernização 1924-40, a construção das pontes metálicas (1928); aos aterros sucessivos desde o fim do Século XIX aos anos de 1940 (porto comercial); 1951-54 (Esplanada Capixaba); anos de 1970 (Terminal Flexibrás e Vila Rubim). Contudo, relativamente ao porto foi obstruída a fruição coletiva do mar de metade da frente aquática da região central de Vitória.
Os catraeiros antes ocupavam o Cais de Aribiri, de Capuaba, de Carvão, de Atalaia, do Jabour, do Paul, de Jaburuna em Vila Velha, e em Vitória, o Cais do Comercio, do Batalha, do Azambuja, do Imperador ou das colunas (alinhado à escadaria do Palácio Anchieta), do Santíssimo, Cais Novo e dos Jesuítas, também conhecido como Porto dos Padres.
Com a institucionalização do Cais Comercial de Vitória, e depois dos cais de Vila Velha, esses barqueiros ficaram limitados a ocupar alguns pontos em Vitória e em Vila Velha. Há alguns anos utilizam instalações precárias como atracadouro, embarque e desembarque.
Até que em 2012, os catraeiros restaram espremidos em Paul entre o porto de Capuaba, o de Paul e novas instalações da Petrobrás. No momento, em Vitória, foram deslocados do ponto que ocupavam há mais de 60 anos para um local que não agrada nem catraeiros nem seus 600 passageiros diários.
A autoridade Portuária do Porto de Vitória divulga projeto de revitalização do Cais Comercial de Vitória para o alargamento/contenção de berços com expansão sobre a baía por 22 metros e em direção ao Edifício Fabio Ruschi, na Avenida Beira Mar. A autoridade Portuária anuncia que o “comprimento do cais comercial de Vitória passará dos atuais 356 metros para 456 metros. Além disso, o Porto ganhará novo calado, saindo dos atuais 7,7m para 12,5 m. (...). No tocante à área operacional, o pátio de estocagem e manuseio de cargas passará de 26.000 m² para 40.000 m². (...) a obra será executada pela Carioca Cristiani Nielsen Engenharia”. (informações do site da Codesa ‑ Companhia Docas do Espírito Santo).
Esse avanço de 100 metros do cais comercial inclui o espaço que os catraeiros vêm ocupando desde os anos 1940. Segundo informação da própria Autoridade Portuária foram colocados condicionantes por parte do IEMA (Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos), que se referem as obras de revitalização do Cais Comercial de Vitória, citando excerto texto da Assessoria de comunicação / ASSECS: “O projeto do deck atende a condicionante nº 07 da licença de instalação nº 045/2010 concedida pelo IEMA”. A condicionante determina que a Codesa apresente o projeto descritivo e executivo da estrutura do novo deck, definido em conjunto com a PMV, e “implante-o antes do início da desmobilização do antigo ponto dos catraieiros”.
O novo deck consistiria numa nova estrutura para os catraieiros com 80 metros quadrados, e ofereceria “mais conforto e segurança no embarque e desembarque de passageiros”. De acordo, com o site da empresa, este deck seria construído em madeira e sobre um flutuante para adequação as condições da maré. Segundo informe da Codesa: “a instalação permitirá, por exemplo, acessibilidade aos deficientes físicos, que o ponto atual dos catraieiros não oferece. Assim, além de conforto e melhora no acesso, a estrutura possibilitará maior segurança aos usuários”.
O informe da Codesa expressa ainda que: “O novo deck será instalado cerca de 40 metros da estrutura atual, ficando o embarque de passageiros em frente à Praça Pio XII, com os barcos ancorando alguns metros em direção ao norte”.
As obras foram realizadas pela empresa Carioca e o deck entregue não corresponde de nenhum modo à descrição anterior. Está aquém das dimensões pré-acordadas, não obedece às especificações estruturais e materiais ‑ é metálica, também não oferece o prometido conforto aos passageiros. A travessia que antes era de 5 minutos (entre Vitória e Paul) se tornou mais lenta e perigosa para os passageiros e os 14 barcos. Com razão, os catraeiros se sentem prejudicados. Os passageiros, garantia de seu sustento, tendem a diminuir no contexto dessas novas condições.
Foto Renata Morelato

Foto Renata Morelato, este é o deck construído pela empresa Carioca

Compreendemos que as obras no Porto de Vitória representarão uma “sobrevida operacional e comercial”, isso é sem dúvida um benefício para a cidade, mas tem que se suceder sem que haja prejuízo a qualquer segmento social diretamente envolvido. Uma disputa entre o porto e os catraeiros é desproporcional em termos de relação de força econômica e política.
Na nossa história, os catraeiros cederam todo espaço que antes ocupavam para as atividades portuárias produtivas modernas. Por outro lado, são “cantados em prosa e verso” por entusiastas da “identidade capixaba”. Sua atividade profissional é, inclusive, reconhecida pelas instituições culturais estaduais: a Associação Estadual de Arquivologia reuniu documentos para dar entrada para tombamento da atividade dos catraeiros como bem imaterial no IPHAN ‑ Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, com apoio da Prefeitura de Vitória. É uma ação cultural importante, mas poderá ser tarde para os catraeiros e suas famílias, cujas necessidades são materiais e imediatas.
O episódio vivido pelos catraeiros é mais um, dentre tantos, desde a instalação das grandes empresas no estado, em que as comunidades locais vulneráveis são relegadas, colocadas em situação de precariedade: índios foram convertidos em aculturados; quilombolas e pequenos agricultores em sem-terra e sem teto; e trabalhadores de ofícios tradicionais em desempregados. Enfim, confirma-se que a metrópole como externalidade positiva para as corporações vence da cidade como multiciplidade e diversidade.

Os catraeiros têm marcado presença em toda sua história da Baía de Vitória. Não aceitamos os argumentos do custo do progresso e as promessas de futuro. Como diz Simone Weil: “O futuro não nos traz nem nos dá nada. Nós é que, para construí-lo, devemos dar-lhe tudo”. Operações como esta levam questionar a qualidade de governança no que se refere ao modus operandi das políticas públicas e, no limite, a legitimidade das decisões sobre o bem comum.
Além de nos posicionar em favor de mais respeito aos catraeiros e em favor de uma renegociação sobre os termos de seu deslocamento da posição que ocuraram até 2011; a nossa intenção é ressaltar que os cidadãos usuários de seu bom serviço, também se sentem prejudicados. Esse que é o único remanescente de transporte hidroviário na Baía de Vitória e que se constitui numa forma de transporte alternativo, não poluente; de custo acessível, além de tudo, rápido. Esta é uma forma de transporte secular, que cumpre uma função que o Estado ignora, que é a implantação de um sistema de transporte aquaviário em cidades com potencial para desenvolver este sistema, a Baía de Vitória é um desses casos. Isso constitui uma recomendação do Fórum Nacional pela Reforma Urbana. Lembramos que o transporte é um serviço essencial e um direito. 
Clara Luiza Miranda

Comentários

  1. A situação dos Catraieiros da Baia de Vitória é delicada, com esta interferência no local,precisamos ter muita atenção para que a prática do fazer desta classe de trabalhadores não deixe de existir, pondo fim a esse fazer histórico. No dia 27/12/2011 foi apresentado o projeto organizado por mim e por outros profissionais da Associação dos Arquivistas do ES, este inventário solicita a salvaguarda dos Catraieiros da Baia de Vitória, assim como foi feito para as paneleiras de goiabeiras, a fim de considera-los um bem imaterial capixaba,este relatório é acompanhado de um vídeo com foco de entrevistas chaves, sobre a importância destes autores e de seu fazer.
    Espera-se que o IPHAN órgão competente que receberá tal documentação avalie o ínventário e respondam a nossa solicitação de salvaguarda, porque enquanto eles não forem protegidos como um bem cultural, será complicado as negociações de proteção e investimentos do poder público.
    Obs.: Esta nota e repotargem será acrescentada ao inventário para a avaliação do IPHAN.
    Para maiores informações, este projeto de pesquisa e inventário foi possível pelos recursos do edital 06/2011 da Secult-ES e estamos em processo de edição do livro com recursos da Lei Rubem Braga, a ser lançado ainda este ano de 2012.
    Cleima Rabelo

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  2. Quando esta nota foi escrita não tinha algumas informações: são cerca de 300 passageiros, um pouco mais, não 600, são 17 catraeiros não 14,,, e a Codesa assegura que ainda vai executar o cais segundo as condições acordadas quando as obras terminarem, que aquele cais é provisório. A sobrevida do porto, após esta obra está estimada em 30 anos.
    O processo que Gleima cita acima está em andamento, o Conselho Municipal de Cultura de Vitória encaminhou carta de apoio a salvaguarda do oficio de catraeiros, buscando uma reunião com o Conselho Estadual de Cultura. Maio de 2012.

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