Em artigo anterior, “Manifestações: o nome do jogo”
(1), interpretei as atuais manifestações de rua como faceta brasileira
de um movimento global de reconstrução da democracia, busca de
representatividade e legitimidade das instituições, e eliminação da
captura global da política pelo setor financeiro.
Trata-se portanto de um processo e não de mero evento,
podendo-se prever etapas sucessivas, desde que se mantenha a
justificada pressão da sociedade sobre as instituições políticas. Donde a
necessidade das manifestações refluírem para temas básicos. A rua
manifestou seu descontentamento e exigiu mudanças tópicas, donde a
variedade de palavras de ordem que pouco a pouco foram aparecendo nas
manifestações. No entanto, na medida em que se percebe a eficácia das
mesmas, observando-se a reação assustada e precipitada do mundo político, os manifestantes poderão focar dois temas básicos e catalizadores: o tema central da reforma política, e o tema da qualidade de vida urbana. O
primeiro constitui amplo guardachuva sob o qual alinha-se o combate à
corrupção, a ética na política, o combate à impunidade, o ajuste da
representação partidária, o injustificado alto nível
das remunerações e subsídios para cargos públicos do legislativo e do
judiciário, e, finalmente, a construção de canais de efetiva comunicação
entre governantes e governados.
No entanto, mais do que a reforma política, o que
mobiliza a sociedade em um primeiro momento é o conjunto de subtemas que
constituem o mal viver em nossas cidades. A qualidade de vida urbana e suas deficiências abarcam desde a mobilidade ao bom uso dos espaços públicos,
da segurança do cidadão à melhoria ambiental. Em São Paulo trata-se de
uma pauta de melhorias pertinentes à discussão do Plano Diretor
2013/2023 e especialmente oportuna quando da elaboração dos planos de
bairro., tarefas estas já iniciadas pela Prefeitura. Seu debate, pelo
menos nesta cidade, permite a imediata participação da sociedade no
debate.
Além da batalha ganha dos 20 centavos, há que desenhar, portanto, uma pauta de ação
e os formatos de participação que catalizem a ação da sociedade e
constituam o processo de melhoria de qualidade de vida urbana e de
redemocratização desejadas. Outras palavras de ordem, além das já
ventiladas, poderiam ser lançadas, aproveitando o histórico momento em
que a Nação, na rua, evidencia ter o poder de tomar iniciativas com
relação ao Estado, fato raro em nossa história.
Eis algumas leis que não conflitam com a Constituição e
que poderiam desde já ser propostas: (a) a proibição de pessoas eleitas
para um legislativo ocuparem cargos em outros poderes (especialmente no
executivo) eliminando a prática imoral de uma pessoa eleita para
legislar trair o voto para acomodar-se no poder executivo, com a
vantagem suplementar de poder escolher o salário mais alto; (b) após a
explicitação da remuneração individual e dos benefícios agregados dos
ocupantes de cargos nos três poderes, achatamento dos valores para
caberem nos tetos estabelecidos e eliminação jurídica dos diversos
truques de isonomia que vão aumentando o nível de ganho de quem está em
cargo público; (c) a correção das normas eleitorais, sempre de acordo
com a Constituição, de modo a tornar a representatividade de fato
proporcional, eliminando finalmente os cargos dos senadores biônicos
(criados artificialmente pelo presidente Geisel com o objetivo
circunstancial de naquela época garantir no Congresso a maioria do
partido do governo); (d) estabelecimento de clara diferença entre
“informação” e “comunicação” na gestão governamental: enquanto a
primeira se traduz pela transparência com que o governante mantém
informados os governados, a comunicação é um canal de dois sentidos,
destinados a falar e a ouvir a sociedade; neste canal se insere o
mecanismo de conselhos setoriais permanentes.
Mas, quem deve tomar a iniciativa dessas medidas ? Embora todas possam ser tomadas pelo Congresso é precisamente dele que menos se pode esperar pois está em franca defensiva. O governo federal e a Presidência podem assumir a elaboração de alguns projetos de lei. Ao nível estadual e municipal os governantes também podem tomar iniciativas e, no caso de legalmente necessário, enviá-los com urgência aos seus legislativos. O Supremo Tribunal Eleitoral, respaldado pelo STF
também poderia emitir normas que digam respeito a eleições, sempre
focando a justa representação da sociedade através de partidos, assim
como os atributos éticos ampliados a partir da Lei da Ficha Limpa. Os partidos
políticos, também acuados, tem a obrigação de se posicionar: os que
permanecerem na defensiva e no silêncio ante as críticas da rua,
destinam-se ao opróbrio público e provavelmente irão desaparecer por
falta de votos; os que tiverem sensibilidade e compreensão do
significado das manifestações, deverão apoiar reformas e comprometer-se
com uma mudança ética de ação, abandonando o pragmatismo oportunista,
frequentemente a-ético, “justificado” pelos problemas de
governabilidade.
No que tange à qualidade de vida urbana, a iniciativa
caberia à Prefeitura e aos cidadãos e suas organizações não
governamentais e creio que em parte o seu processo de elaboração já
esteja sendo feito, cabendo, contudo, dar ênfase aos tópicos que compõem
o mal viver que a sociedade está denunciando nas manifestações.
Seja quem for tomar a iniciativa, o importante é que a consulta e participação
da sociedade constituam o ponto de partida! Por isso, por exemplo, o
plebiscito proposto pela Presidente é mais adequado do que um referendo,
preferido pelos parlamentares conservadores (embora ambos os
procedimentos possam em sucessão ser adotados): no primeiro a sociedade
responde a perguntas e seu resultado iluminará a elaboração de lei por
parte do Congresso; no segundo, o Congresso elabora uma lei, e esta é
consultada em referendo para aceitar ou recusar o trabalho dos
congressistas. Um plebiscito enseja o debate público de teses, durante
os 2-3 meses necessários à sua organização, tornando-se informativo,
educativo, e mantendo focado o movimento das ruas.
Há riscos. O menos provável seria um novo golpe militar,
instigado por minorias civis escondidas, sob o pretexto de “por ordem
na bagunça”. Outro improvável é o surgimento de um “salvador da Pátria”
carismático, talvez apoiado por movimentos religiosos. O risco maior, no
entanto, seria o refluir do movimento das ruas, esgotado e sem
respostas, permitindo que, sob disfarce retórico, permanecesse o
distanciamento entre sociedade e sistema político; pois este risco
levaria ao descrédito do próprio regime democrático.
nota
1
WILHEIM, Jorge. Manifestações: o nome do jogo. Drops, São Paulo, n. 14.070.05, Vitruvius, jul. 2013 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/14.070/4810>.
WILHEIM, Jorge. Manifestações: o nome do jogo. Drops, São Paulo, n. 14.070.05, Vitruvius, jul. 2013 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/14.070/4810>.
sobre o autor
Jorge Wilheim é arquiteto e urbanista.
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