Em busca do urbanismo perdido - suplementos - alias - Estadão
Antonio Risério escreve em Salvador. Desta vez, não um verso ou uma
música, mas uma crítica atilada sobre os retratos deste Brasil. "As
cidades brasileiras estão vivendo dias especialmente difíceis, de uma
ponta a outra do País. Estão maltratadas, sujas, agressivas", descreve o
antropólogo e autor de A Cidade no Brasil e A Utopia Brasileira e os
Movimentos Negros (ambos publicados pela Editora 34).
Atravessamos a maior crise urbana da história brasileira, define o
escritor, enquanto "nossos governantes, numa verdadeira marcha da
insensatez, abrem mão da reforma urbana". Que fazer? "Para enfrentar a
crise atual, precisaríamos de um verdadeiro Ministério das Cidades, de
prefeitos que não se comportassem como agentes da especulação
imobiliária, de uma vontade coletiva de sair do buraco."
Nesta entrevista ao Aliás, feita na quinta-feira, Antonio Risério
discute as configurações urbanas brasileiras - especialmente dos pontos
de vista histórico e antropológico - encravadas entre Copa e Olimpíada,
MTST e MPL, passando por um rolezinho no shopping e um jogo no Paris
Saint-Germain. Sua Salvador? "Uma mistura de cantora de axé, prostituta
decadente e capoeirista bêbado, um vilarejo com elefantíase." Rio
vitrine olímpica? "Tende a ser o paraíso do autoengano. O País não está
nadando em dinheiro. A prioridade deveria ser a luta contra a
favelização." São Paulo aniversariante? "Diz muito de nossa força e de
nossa miséria. Mas a cidade é bem maior que seus governantes. Em termos
banais, mas sinceros, acredito que essa força vá vencer a miséria física
e reinstaurar a urbanidade perdida."
De volta às ruas, manifestantes do MTST protestaram por
mais moradia em São Paulo. Diante da cidade atual, fragmentada em
diversos problemas (violência, trânsito, moradia, mobilidade,
cracolândia, etc.), o caos de São Paulo é irreversível?
É reversível, desde que não sejamos
irresponsáveis. Atravessamos a maior crise urbana da história
brasileira. E nossos governantes, numa verdadeira marcha da insensatez,
abrem mão da reforma urbana. Ninguém ouve mais falar da grande reforma
urbana nacional que a presidente Dilma Rousseff se comprometeu a fazer.
As promessas não se traduziram em práticas. O programa Minha Casa, Minha
Vida constrói hoje as favelas do futuro. Em São Paulo, Fernando Haddad
lançou o projeto Arco do Futuro, mas logo o jogou no lixo. O Brasil é um
país que, por flexibilidade ou por hipocrisia, chega muito fácil a
certos consensos, mas não realiza as coisas. É por isso que podemos
falar de consensos subversivos - consensos que, se levados à prática,
transformariam espetacularmente a vida brasileira. Por exemplo: todo
mundo concorda que todos precisamos de um lugar onde morar. Mas por que
até hoje isso não aconteceu? Milhões de brasileiros, depois de 20 anos
de governos social-democratas, continuam amontoados em alojamentos
deprimentes. Em nenhum outro lugar a desigualdade social se expressa de
forma tão clara e brutal quanto na moradia. No entanto, a carência
habitacional seria superada se os donos do poder e do dinheiro
conjuntamente o quisessem. Para enfrentar a crise atual, precisaríamos
de um governo que levasse o assunto a sério, de um verdadeiro Ministério
das Cidades, de prefeitos que não se comportassem como agentes da
especulação imobiliária, de uma verdadeira vontade coletiva de sair do
buraco. De uma verdadeira reforma urbana.
Estima-se que cerca de 400 mil pessoas serão afetadas
pela realização da Copa de 2014 e da Olimpíada de 2016, no Rio. Ainda
nessa semana, Estocolmo desistiu da disputa para sediar os Jogos
Olímpicos de Inverno de 2022, argumentando que a capital sueca tem
outras prioridades - e a conta para organizar os jogos seria alta
demais. O argumento sueco convence?
Quando promoveu a Olimpíada de Barcelona, a
Espanha andava rica. A China também tinha como gastar e gastou, ainda
que ferindo a paisagem urbana tradicional de Pequim. Então, o argumento
convence. Mas o Brasil tende a ser o paraíso do autoengano. O país não
está nadando em dinheiro. Depois de Antonio Palocci, a política
econômica do governo meteu os pés pelas mãos. Estamos combinando
crescimento medíocre e inflação controlada artificialmente. A prioridade
deveria ser a luta contra a favelização do país, por casas decentes e
serviços públicos de qualidade, contra a violência e o narcotráfico,
contra a podridão do sistema político e pelo direito de todos à cidade.
Como foi dito nas ruas durante as manifestações de junho. Mas os
governantes querem manipular as coisas. Dizem que o Brasil avançou tanto
nos últimos dez anos que agora vai às ruas dizer que quer mais. Até as
manifestações de junho passam a ser vistas como subproduto da excelência
dos governos do PT. Mas o Brasil não foi às ruas dizer que "quer mais".
O Brasil quer diferente. Quer um governo cujo compromisso maior não
seja com o mercado e o consumo, mas com a melhoria das condições de vida
das pessoas. Além disso, o que Fernando Henrique e o PT não querem
reconhecer é que eles atiraram fora a oportunidade histórica de renovar a
política no Brasil. As pessoas foram para as ruas dizer que é
necessário revitalizar a democracia brasileira, hoje degradada. A
sociedade quer ser ouvida, manifesta anseios de democracia direta, etc.,
e exige hospitais "padrão Fifa". Ok. A prioridade do Brasil tem de ser
investir na população brasileira.
Estão previstos para esse sábado 36 protestos contra a
Copa - marcados em todos os Estados e no DF com o slogan #nãovaitercopa.
Curitiba, antes considerada exemplo de urbanismo e mobilidade, periga
ficar de fora do mundial devido a atrasos nas obras. Queremos a Copa?
Por quê?
Queremos a Copa porque, como a Inglaterra e a
Argentina, pensamos que isso aqui é o país do futebol. Entendo que o
povo brasileiro queira ver partidas espetaculares, diferentes do
futebolzinho de nossos campeonatos. Confesso que acompanho mais o
campeonato espanhol do que o brasileiro. Prefiro ver nossos craques no
Paris Saint-Germain, no Chelsea, no Milan, etc., a perder meu tempo com
os pernas de pau do Botafogo ou do Palmeiras. Dá vontade de ir ao
estádio da Fonte Nova apreciar uma partida entre Portugal e Alemanha. De
outra parte, é significativo que manifestações anti-Copa aconteçam no
Brasil, país pentacampeão do mundo. Todos já viram a faixa "da Copa eu
abro mão - queremos dinheiro para saúde, segurança e educação". Em vez
de estabelecer um compromisso prévio com a iniciativa privada para
viabilizar a Copa, nossos políticos e governantes preferiram o lance de
marketing, faturando com o fato de trazer o grande evento para o Brasil.
Mas a população vê a saúde e a educação públicas caindo aos pedaços. E
paciência tem limite. Mesmo dentro dos estádios. A presidente foi vaiada
na Copa das Confederações. E a cena vai se repetir na Copa do Mundo, se
ela pisar no Maracanã. Ou seja: queremos a Copa, mas queremos também
escolas e hospitais. O governo não pode gastar fortunas na Copa e
migalhas com as pessoas que são e fazem o País.
Questão especialmente urbana, os ‘rolezinhos’ dominaram
as páginas da imprensa nas últimas semanas. Em certo trecho do livro A
Cidade no Brasil, o sr. discute os shoppings, citando Susan Sontag e
Bauman. Diante dessas novas polêmicas, o que um shopping representa numa
cidade?
Shoppings são espaços de consumo seguro e
socialmente segregador. Prédios com uma arquitetura hostil à rua, aos
acasos da cidade, ao ar livre, diversamente do que se pode ver num
terreiro de candomblé. Mas não é só. Os shoppings não apenas
contribuíram para destronar os antigos centros das cidades, como se
dispuseram a substituí-los, convertendo-se em neocentros urbanos. Uma
"cidade" dentro da cidade, triunfo radical e caricatural do
"higienismo". O shopping é ainda um espaço interpessoal e
intersemiótico. Os jovens sempre foram a face mais visível de seus
frequentadores, embora seu público consumidor seja tradicional e
predominantemente feminino, de diversas gradações etárias. E é claro que
o shopping é, também, uma espécie de clube, com sua forma de
sociabilidade. Anos atrás, Witold Rybczynski, um urbanista
polonês-escocês, escrevia que o shopping era um lugar "com um nível
razoável de ordem, com a garantia de que o consumidor não será
importunado por atos bizarros de comportamento, nem abordado ou
intimidado por adolescentes mal-educados, bêbados barulhentos e mendigos
agressivos". É essa estufa de flores sociais variavelmente
privilegiadas que se vê ameaçada pelo rolezinho. A ralé resolveu usar o
clube para fazer sua festa. Para participar da grande festa do consumo,
para a qual é seduzida diariamente pela publicidade, por telenovelas e
outras vitrines do mundo rico. Por isso mesmo, é bom sublinhar que o
rolezinho não é filho da pobreza, mas produto da desigualdade. E é uma
bobagem a ideia de que tudo se resolverá com a construção de
"rolezódromos". Longe disso.
Outra questão essencial para a cidade: é possível imaginar a despoluição do Rio Tietê?
Quase toda cidade que conheço, na vastidão
territorial brasileira, nasceu na beira da água. Com a expansão urbana,
esses rios, riachos e lagoas foram poluídos, transformados em esgotos,
aterrados. Manaus é um exemplo terrível: avenidas e ruas construídas
sobre o aterro dos igarapés. São Paulo, por sua vez, nasceu debruçada
sobre rios e tratou de tentar matá-los. Mas ainda é possível recuperar
muitas coisas. Hoje, uma dimensão importante e sedutora do discurso
ambiental, em São Paulo, diz respeito à necessidade de recuperação dos
córregos e rios da cidade. São muitos os estudos sobre esses fluxos
fluviais que foram condenados à imundície ou a se mover nos subterrâneos
da cidade. Arquitetos e urbanistas, como Alexandre Delijaicov com seu
anel hidroviário, têm projetos para recuperar e reativar as coisas,
planejando fazer novamente de São Paulo um lugar de portos, circulação
de barcos e até de canoas. Vemos também essa preocupação em trabalhos
recentes de alunos da Escola da Cidade. Mas também no discurso de
artistas, como a cineasta Tata Amaral. A mensagem disso tudo é que uma
nova São Paulo pode nascer a partir da transfiguração contemporânea de
sua própria origem, isto é, recuperando e reincorporando seus rios ao
movimento dinâmico da vida, reestruturando suas relações com as águas.
O MP foi à Justiça contra a Prefeitura de São Paulo para
obrigá-la a resolver o problema das enchentes e indenizar vítimas de
alagamentos. Mas, todo verão, cidades brasileiras são castigadas por
chuvas e alagamentos. Se é assim uma ‘tragédia anunciada’, que medidas
devem ser tomadas para evitá-la? E por que não as tomamos?
Nossos governantes sabem o que precisa ser feito - e não é de hoje.
São Paulo não está condenada a sofrer todo ano com enchentes. Foi a
urbanização das várzeas que transformou as cheias naturais em enchentes
crônicas. Com o tempo, e como os governos não se empenhavam com seus
recursos e energia para resolver o problema, a questão foi se agravando:
os rios de São Paulo, antes objeto de lazer e contemplação, viraram
fonte de problemas. Tecnicamente, é possível resolver isso. Basta
perguntar a qualquer bom técnico da gestão de Kassab ou de Haddad que
ele explica direitinho o que tem de ser feito. O problema é que ninguém
faz. Mas talvez isso mude, em consequência da expansão da consciência
socioecológica na sociedade - e porque tudo indica que aquela conversa
de que saneamento não dá voto vai ser cada vez mais coisa do passado. O
que acho inaceitável é ouvir um Sérgio Cabral dizer, a cada enchente que
devasta casas e vidas no Rio, que a situação é essa porque nunca os
governos tentaram modificar as coisas. Isso é cara de pau. Quem está há
dez anos no poder não tem o direito de usar essa desculpa esfarrapada.
A questão do transporte público ganhou força desde junho, com o MPL. A discussão sobre o transporte público é página virada?
A luta pelo transporte público bom e gratuito é
fundamental. Insisto na gratuidade porque, conforme o IBGE, 37,3% dos
brasileiros andam a pé por falta de dinheiro. É mais gente a pé do que
de transporte coletivo (29,1%) ou de carro particular (30,4%). E acho
ridículo quando dizem que a moçada que luta contra o aumento da tarifa
não precisa pagar ônibus. Se é verdade, a garotada de classe média está
recuperando uma noção de solidariedade que parecia ter perdido. É
maravilhoso que jovens privilegiados lutem pelo direito de todos se
moverem gratuitamente nos espaços urbanos. Agora, a gente sabe que não
houve nenhum avanço realmente significativo na matéria, em termos
nacionais. Ainda há uma grande batalha. De Juscelino Kubitschek até
hoje, a opção dos governos foi pelo carro individual. Kubitschek queria
industrializar rapidamente o País e apertou o acelerador. Mas, mesmo
recentemente, Lula e Dilma, com sua ênfase consumista, privilegiaram o
comércio de automóveis, dando uma contribuição imensa para encalacrar de
vez nossas cidades. Além de não atender a maioria da população, o carro
individual sai caro demais para o governo. André Lara Resende chamou a
atenção para isso: a indústria automobilística é a que mais gera gasto
público. Carro novo na rua obriga o governo a usar recursos para fazer
ruas, pontes, viadutos, etc. É um gasto absurdo, que poderia se
concentrar no transporte público e melhorar a vida das pessoas e das
cidades.
No livro, o sr. diz que, apesar dos diversos problemas
das cidades, é intrigante que um tema grave quase nunca seja destacado: a
segregação socioespacial ou socioterritorial. Que seria essa
segregação?
A segregação socioespacial acontece quando as
pessoas deixam de viver misturadas e o território é repartido em função
da estratificação econômica, com os mais ricos se concentrando em
determinada área citadina e os mais pobres obrigados a procurar outros
cantos para morar. O problema não é exclusivamente brasileiro, mas nosso
processo tem sua especificidade. Na América espanhola, por exemplo, as
cidades já nasceram segregadas. Eram cidades geometrizadas, com as
classes e etnias distribuídas de forma compartimentada ao longo da
grelha. No Brasil, não. Senhores e escravos viviam próximos uns dos
outros. A segregação só se impôs com os processos de modernização
urbana. O Rio, por exemplo, era uma cidade apertada, onde todos eram
vizinhos. A separação começou com a expansão rica tomando a direção do
subúrbio, como vemos no romance de Machado de Assis, com seus casarões
em lugares então distantes como Botafogo ou Flamengo. Com Brás Cubas
caçando de espingarda na Tijuca. E essa segregação se acentuou de Mauá a
Pereira Passos, com a modernização do centro. Os pobres foram quase
todos enxotados das áreas centrais e subiram os morros ou foram para
espaços afastados. Não foi diferente o que aconteceu em São Paulo e
Salvador. Mais recentemente, essa separação espacial segundo linhas de
classe e cor se tornou menos geográfica do que pontual. A população não é
mais necessariamente segmentada em bairros diferentes. O que segrega é o
caráter de enclave que as residências dos mais ricos assumem, com
cercas elétricas e sistemas de vigilância. Na antiguidade clássica, as
cidades se cercavam de muros a fim de se proteger de inimigos externos.
Hoje, os muros são internos, separando concidadãos. E esses muros
precisam ser derrubados, tornar-se desimportantes, para que as nossas
cidades, com todos seus inevitáveis conflitos, sejam socialmente
saudáveis.
Agora no 460° aniversário da cidade, o que São Paulo diz
sobre nós? O que Salvador diz sobre o sr.? E, por fim, o que as cidades
brasileiras dizem sobre o Brasil?
As cidades brasileiras estão vivendo hoje dias
especialmente difíceis, de uma ponta a outra do País. Estão maltratadas,
sujas, agressivas. Salvador parece uma mistura de cantora de axé,
prostituta decadente e capoeirista bêbado, um vilarejo com elefantíase,
com uma classe rica incomparavelmente grosseira e governantes que não
têm ideia do que seja uma cidade. Às vezes, chego a pensar que a
população atual de Salvador não está à altura da cidade que herdou,
porque, se estivesse, não avacalharia tanto o lugar. Mas não penso que
seja o fim do mundo. São Paulo também atravessa tempos muito
conturbados, mas acho que está melhor do que Salvador. Prefiro mil vezes
andar pelas ruas paulistanas do que pelas baianas. Para usar um clichê,
São Paulo diz muito de nossa força e de nossa miséria. A cidade é bem
maior do que seus governantes. E - ainda em termos banais, mas sinceros -
acredito que, mais cedo ou mais tarde, essa força (humana, social,
cultural) vá vencer a miséria física e reinstaurar a urbanidade perdida.
25 de janeiro de 2014 | 14h 21
'O caos de São Paulo é reversível. Mas é preciso uma verdadeira vontade coletiva de sair do buraco', diz escritor
Juliana Sayuri - O Estado de S. Paulo
Enquanto São Paulo festeja seus 460 anos, o poeta Antonio Risério escreve em Salvador. Desta vez, não um verso ou uma
música, mas uma crítica atilada sobre os retratos deste Brasil. "As
cidades brasileiras estão vivendo dias especialmente difíceis, de uma
ponta a outra do País. Estão maltratadas, sujas, agressivas", descreve o
antropólogo e autor de A Cidade no Brasil e A Utopia Brasileira e os
Movimentos Negros (ambos publicados pela Editora 34).
Atravessamos a maior crise urbana da história brasileira, define o
escritor, enquanto "nossos governantes, numa verdadeira marcha da
insensatez, abrem mão da reforma urbana". Que fazer? "Para enfrentar a
crise atual, precisaríamos de um verdadeiro Ministério das Cidades, de
prefeitos que não se comportassem como agentes da especulação
imobiliária, de uma vontade coletiva de sair do buraco."
Nesta entrevista ao Aliás, feita na quinta-feira, Antonio Risério
discute as configurações urbanas brasileiras - especialmente dos pontos
de vista histórico e antropológico - encravadas entre Copa e Olimpíada,
MTST e MPL, passando por um rolezinho no shopping e um jogo no Paris
Saint-Germain. Sua Salvador? "Uma mistura de cantora de axé, prostituta
decadente e capoeirista bêbado, um vilarejo com elefantíase." Rio
vitrine olímpica? "Tende a ser o paraíso do autoengano. O País não está
nadando em dinheiro. A prioridade deveria ser a luta contra a
favelização." São Paulo aniversariante? "Diz muito de nossa força e de
nossa miséria. Mas a cidade é bem maior que seus governantes. Em termos
banais, mas sinceros, acredito que essa força vá vencer a miséria física
e reinstaurar a urbanidade perdida."
De volta às ruas, manifestantes do MTST protestaram por
mais moradia em São Paulo. Diante da cidade atual, fragmentada em
diversos problemas (violência, trânsito, moradia, mobilidade,
cracolândia, etc.), o caos de São Paulo é irreversível?
É reversível, desde que não sejamos
irresponsáveis. Atravessamos a maior crise urbana da história
brasileira. E nossos governantes, numa verdadeira marcha da insensatez,
abrem mão da reforma urbana. Ninguém ouve mais falar da grande reforma
urbana nacional que a presidente Dilma Rousseff se comprometeu a fazer.
As promessas não se traduziram em práticas. O programa Minha Casa, Minha
Vida constrói hoje as favelas do futuro. Em São Paulo, Fernando Haddad
lançou o projeto Arco do Futuro, mas logo o jogou no lixo. O Brasil é um
país que, por flexibilidade ou por hipocrisia, chega muito fácil a
certos consensos, mas não realiza as coisas. É por isso que podemos
falar de consensos subversivos - consensos que, se levados à prática,
transformariam espetacularmente a vida brasileira. Por exemplo: todo
mundo concorda que todos precisamos de um lugar onde morar. Mas por que
até hoje isso não aconteceu? Milhões de brasileiros, depois de 20 anos
de governos social-democratas, continuam amontoados em alojamentos
deprimentes. Em nenhum outro lugar a desigualdade social se expressa de
forma tão clara e brutal quanto na moradia. No entanto, a carência
habitacional seria superada se os donos do poder e do dinheiro
conjuntamente o quisessem. Para enfrentar a crise atual, precisaríamos
de um governo que levasse o assunto a sério, de um verdadeiro Ministério
das Cidades, de prefeitos que não se comportassem como agentes da
especulação imobiliária, de uma verdadeira vontade coletiva de sair do
buraco. De uma verdadeira reforma urbana.
Estima-se que cerca de 400 mil pessoas serão afetadas
pela realização da Copa de 2014 e da Olimpíada de 2016, no Rio. Ainda
nessa semana, Estocolmo desistiu da disputa para sediar os Jogos
Olímpicos de Inverno de 2022, argumentando que a capital sueca tem
outras prioridades - e a conta para organizar os jogos seria alta
demais. O argumento sueco convence?
Quando promoveu a Olimpíada de Barcelona, a
Espanha andava rica. A China também tinha como gastar e gastou, ainda
que ferindo a paisagem urbana tradicional de Pequim. Então, o argumento
convence. Mas o Brasil tende a ser o paraíso do autoengano. O país não
está nadando em dinheiro. Depois de Antonio Palocci, a política
econômica do governo meteu os pés pelas mãos. Estamos combinando
crescimento medíocre e inflação controlada artificialmente. A prioridade
deveria ser a luta contra a favelização do país, por casas decentes e
serviços públicos de qualidade, contra a violência e o narcotráfico,
contra a podridão do sistema político e pelo direito de todos à cidade.
Como foi dito nas ruas durante as manifestações de junho. Mas os
governantes querem manipular as coisas. Dizem que o Brasil avançou tanto
nos últimos dez anos que agora vai às ruas dizer que quer mais. Até as
manifestações de junho passam a ser vistas como subproduto da excelência
dos governos do PT. Mas o Brasil não foi às ruas dizer que "quer mais".
O Brasil quer diferente. Quer um governo cujo compromisso maior não
seja com o mercado e o consumo, mas com a melhoria das condições de vida
das pessoas. Além disso, o que Fernando Henrique e o PT não querem
reconhecer é que eles atiraram fora a oportunidade histórica de renovar a
política no Brasil. As pessoas foram para as ruas dizer que é
necessário revitalizar a democracia brasileira, hoje degradada. A
sociedade quer ser ouvida, manifesta anseios de democracia direta, etc.,
e exige hospitais "padrão Fifa". Ok. A prioridade do Brasil tem de ser
investir na população brasileira.
Estão previstos para esse sábado 36 protestos contra a
Copa - marcados em todos os Estados e no DF com o slogan #nãovaitercopa.
Curitiba, antes considerada exemplo de urbanismo e mobilidade, periga
ficar de fora do mundial devido a atrasos nas obras. Queremos a Copa?
Por quê?
Queremos a Copa porque, como a Inglaterra e a
Argentina, pensamos que isso aqui é o país do futebol. Entendo que o
povo brasileiro queira ver partidas espetaculares, diferentes do
futebolzinho de nossos campeonatos. Confesso que acompanho mais o
campeonato espanhol do que o brasileiro. Prefiro ver nossos craques no
Paris Saint-Germain, no Chelsea, no Milan, etc., a perder meu tempo com
os pernas de pau do Botafogo ou do Palmeiras. Dá vontade de ir ao
estádio da Fonte Nova apreciar uma partida entre Portugal e Alemanha. De
outra parte, é significativo que manifestações anti-Copa aconteçam no
Brasil, país pentacampeão do mundo. Todos já viram a faixa "da Copa eu
abro mão - queremos dinheiro para saúde, segurança e educação". Em vez
de estabelecer um compromisso prévio com a iniciativa privada para
viabilizar a Copa, nossos políticos e governantes preferiram o lance de
marketing, faturando com o fato de trazer o grande evento para o Brasil.
Mas a população vê a saúde e a educação públicas caindo aos pedaços. E
paciência tem limite. Mesmo dentro dos estádios. A presidente foi vaiada
na Copa das Confederações. E a cena vai se repetir na Copa do Mundo, se
ela pisar no Maracanã. Ou seja: queremos a Copa, mas queremos também
escolas e hospitais. O governo não pode gastar fortunas na Copa e
migalhas com as pessoas que são e fazem o País.
Questão especialmente urbana, os ‘rolezinhos’ dominaram
as páginas da imprensa nas últimas semanas. Em certo trecho do livro A
Cidade no Brasil, o sr. discute os shoppings, citando Susan Sontag e
Bauman. Diante dessas novas polêmicas, o que um shopping representa numa
cidade?
Shoppings são espaços de consumo seguro e
socialmente segregador. Prédios com uma arquitetura hostil à rua, aos
acasos da cidade, ao ar livre, diversamente do que se pode ver num
terreiro de candomblé. Mas não é só. Os shoppings não apenas
contribuíram para destronar os antigos centros das cidades, como se
dispuseram a substituí-los, convertendo-se em neocentros urbanos. Uma
"cidade" dentro da cidade, triunfo radical e caricatural do
"higienismo". O shopping é ainda um espaço interpessoal e
intersemiótico. Os jovens sempre foram a face mais visível de seus
frequentadores, embora seu público consumidor seja tradicional e
predominantemente feminino, de diversas gradações etárias. E é claro que
o shopping é, também, uma espécie de clube, com sua forma de
sociabilidade. Anos atrás, Witold Rybczynski, um urbanista
polonês-escocês, escrevia que o shopping era um lugar "com um nível
razoável de ordem, com a garantia de que o consumidor não será
importunado por atos bizarros de comportamento, nem abordado ou
intimidado por adolescentes mal-educados, bêbados barulhentos e mendigos
agressivos". É essa estufa de flores sociais variavelmente
privilegiadas que se vê ameaçada pelo rolezinho. A ralé resolveu usar o
clube para fazer sua festa. Para participar da grande festa do consumo,
para a qual é seduzida diariamente pela publicidade, por telenovelas e
outras vitrines do mundo rico. Por isso mesmo, é bom sublinhar que o
rolezinho não é filho da pobreza, mas produto da desigualdade. E é uma
bobagem a ideia de que tudo se resolverá com a construção de
"rolezódromos". Longe disso.
Outra questão essencial para a cidade: é possível imaginar a despoluição do Rio Tietê?
Quase toda cidade que conheço, na vastidão
territorial brasileira, nasceu na beira da água. Com a expansão urbana,
esses rios, riachos e lagoas foram poluídos, transformados em esgotos,
aterrados. Manaus é um exemplo terrível: avenidas e ruas construídas
sobre o aterro dos igarapés. São Paulo, por sua vez, nasceu debruçada
sobre rios e tratou de tentar matá-los. Mas ainda é possível recuperar
muitas coisas. Hoje, uma dimensão importante e sedutora do discurso
ambiental, em São Paulo, diz respeito à necessidade de recuperação dos
córregos e rios da cidade. São muitos os estudos sobre esses fluxos
fluviais que foram condenados à imundície ou a se mover nos subterrâneos
da cidade. Arquitetos e urbanistas, como Alexandre Delijaicov com seu
anel hidroviário, têm projetos para recuperar e reativar as coisas,
planejando fazer novamente de São Paulo um lugar de portos, circulação
de barcos e até de canoas. Vemos também essa preocupação em trabalhos
recentes de alunos da Escola da Cidade. Mas também no discurso de
artistas, como a cineasta Tata Amaral. A mensagem disso tudo é que uma
nova São Paulo pode nascer a partir da transfiguração contemporânea de
sua própria origem, isto é, recuperando e reincorporando seus rios ao
movimento dinâmico da vida, reestruturando suas relações com as águas.
O MP foi à Justiça contra a Prefeitura de São Paulo para
obrigá-la a resolver o problema das enchentes e indenizar vítimas de
alagamentos. Mas, todo verão, cidades brasileiras são castigadas por
chuvas e alagamentos. Se é assim uma ‘tragédia anunciada’, que medidas
devem ser tomadas para evitá-la? E por que não as tomamos?
Nossos governantes sabem o que precisa ser feito - e não é de hoje.
São Paulo não está condenada a sofrer todo ano com enchentes. Foi a
urbanização das várzeas que transformou as cheias naturais em enchentes
crônicas. Com o tempo, e como os governos não se empenhavam com seus
recursos e energia para resolver o problema, a questão foi se agravando:
os rios de São Paulo, antes objeto de lazer e contemplação, viraram
fonte de problemas. Tecnicamente, é possível resolver isso. Basta
perguntar a qualquer bom técnico da gestão de Kassab ou de Haddad que
ele explica direitinho o que tem de ser feito. O problema é que ninguém
faz. Mas talvez isso mude, em consequência da expansão da consciência
socioecológica na sociedade - e porque tudo indica que aquela conversa
de que saneamento não dá voto vai ser cada vez mais coisa do passado. O
que acho inaceitável é ouvir um Sérgio Cabral dizer, a cada enchente que
devasta casas e vidas no Rio, que a situação é essa porque nunca os
governos tentaram modificar as coisas. Isso é cara de pau. Quem está há
dez anos no poder não tem o direito de usar essa desculpa esfarrapada.
A questão do transporte público ganhou força desde junho, com o MPL. A discussão sobre o transporte público é página virada?
A luta pelo transporte público bom e gratuito é
fundamental. Insisto na gratuidade porque, conforme o IBGE, 37,3% dos
brasileiros andam a pé por falta de dinheiro. É mais gente a pé do que
de transporte coletivo (29,1%) ou de carro particular (30,4%). E acho
ridículo quando dizem que a moçada que luta contra o aumento da tarifa
não precisa pagar ônibus. Se é verdade, a garotada de classe média está
recuperando uma noção de solidariedade que parecia ter perdido. É
maravilhoso que jovens privilegiados lutem pelo direito de todos se
moverem gratuitamente nos espaços urbanos. Agora, a gente sabe que não
houve nenhum avanço realmente significativo na matéria, em termos
nacionais. Ainda há uma grande batalha. De Juscelino Kubitschek até
hoje, a opção dos governos foi pelo carro individual. Kubitschek queria
industrializar rapidamente o País e apertou o acelerador. Mas, mesmo
recentemente, Lula e Dilma, com sua ênfase consumista, privilegiaram o
comércio de automóveis, dando uma contribuição imensa para encalacrar de
vez nossas cidades. Além de não atender a maioria da população, o carro
individual sai caro demais para o governo. André Lara Resende chamou a
atenção para isso: a indústria automobilística é a que mais gera gasto
público. Carro novo na rua obriga o governo a usar recursos para fazer
ruas, pontes, viadutos, etc. É um gasto absurdo, que poderia se
concentrar no transporte público e melhorar a vida das pessoas e das
cidades.
No livro, o sr. diz que, apesar dos diversos problemas
das cidades, é intrigante que um tema grave quase nunca seja destacado: a
segregação socioespacial ou socioterritorial. Que seria essa
segregação?
A segregação socioespacial acontece quando as
pessoas deixam de viver misturadas e o território é repartido em função
da estratificação econômica, com os mais ricos se concentrando em
determinada área citadina e os mais pobres obrigados a procurar outros
cantos para morar. O problema não é exclusivamente brasileiro, mas nosso
processo tem sua especificidade. Na América espanhola, por exemplo, as
cidades já nasceram segregadas. Eram cidades geometrizadas, com as
classes e etnias distribuídas de forma compartimentada ao longo da
grelha. No Brasil, não. Senhores e escravos viviam próximos uns dos
outros. A segregação só se impôs com os processos de modernização
urbana. O Rio, por exemplo, era uma cidade apertada, onde todos eram
vizinhos. A separação começou com a expansão rica tomando a direção do
subúrbio, como vemos no romance de Machado de Assis, com seus casarões
em lugares então distantes como Botafogo ou Flamengo. Com Brás Cubas
caçando de espingarda na Tijuca. E essa segregação se acentuou de Mauá a
Pereira Passos, com a modernização do centro. Os pobres foram quase
todos enxotados das áreas centrais e subiram os morros ou foram para
espaços afastados. Não foi diferente o que aconteceu em São Paulo e
Salvador. Mais recentemente, essa separação espacial segundo linhas de
classe e cor se tornou menos geográfica do que pontual. A população não é
mais necessariamente segmentada em bairros diferentes. O que segrega é o
caráter de enclave que as residências dos mais ricos assumem, com
cercas elétricas e sistemas de vigilância. Na antiguidade clássica, as
cidades se cercavam de muros a fim de se proteger de inimigos externos.
Hoje, os muros são internos, separando concidadãos. E esses muros
precisam ser derrubados, tornar-se desimportantes, para que as nossas
cidades, com todos seus inevitáveis conflitos, sejam socialmente
saudáveis.
Agora no 460° aniversário da cidade, o que São Paulo diz
sobre nós? O que Salvador diz sobre o sr.? E, por fim, o que as cidades
brasileiras dizem sobre o Brasil?
As cidades brasileiras estão vivendo hoje dias
especialmente difíceis, de uma ponta a outra do País. Estão maltratadas,
sujas, agressivas. Salvador parece uma mistura de cantora de axé,
prostituta decadente e capoeirista bêbado, um vilarejo com elefantíase,
com uma classe rica incomparavelmente grosseira e governantes que não
têm ideia do que seja uma cidade. Às vezes, chego a pensar que a
população atual de Salvador não está à altura da cidade que herdou,
porque, se estivesse, não avacalharia tanto o lugar. Mas não penso que
seja o fim do mundo. São Paulo também atravessa tempos muito
conturbados, mas acho que está melhor do que Salvador. Prefiro mil vezes
andar pelas ruas paulistanas do que pelas baianas. Para usar um clichê,
São Paulo diz muito de nossa força e de nossa miséria. A cidade é bem
maior do que seus governantes. E - ainda em termos banais, mas sinceros -
acredito que, mais cedo ou mais tarde, essa força (humana, social,
cultural) vá vencer a miséria física e reinstaurar a urbanidade perdida.
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