Como não fazer política urbana — CartaCapital

Como não fazer política urbana — CartaCapital

Sem alarde, no apagar das luzes de 2013 foi lançado pela Fundação João Pinheiro o
novo estudo do déficit habitacional brasileiro, que é o indicador
oficial utilizado pelo Ministério das Cidades. Os dados, apesar de serem
os mais recentes disponíveis, referem-se a 2010. Mas, mesmo defasados,
são reveladores: o déficit habitacional do país aumentou após o Programa
Minha Casa Minha Vida (MCMV)
Em 2008, o número de
famílias sem moradia no país era de 5.546.000 de acordo com o Ministério
das Cidades. Em fevereiro de 2009, foi lançado o Programa MCMV com a
promessa de redução drástica destes números. Ao final de 2010, o MCMV
havia atingido a meta de 1 milhão de casas construídas ou contratadas. Resultado:
o número de famílias sem moradia no final de 2010 era de 6.940.000.
Após 1 milhão financiadas pelo governo, a carência de moradias no Brasil
aumentou praticamente 1,5 milhão. Como pode?
A realidade desafiou a
matemática. Mas não a lógica. A lógica da política urbana brasileira
transforma qualquer programa habitacional em pano de enxugar gelo. O
MCMV, mesmo com sua dimensão significativa, não fugiu à regra.
Na última década o setor
imobiliário – construtoras, incorporadoras, proprietários de terra
urbana – foi da água ao vinho no Brasil. Nunca teve um crescimento tão
potente e tantos estímulos do poder público. O investimento em imóveis
superou a rentabilidade de todas os outros investimentos financeiros e,
de 2008 a 2013, rendeu cinco vezes acima da inflação. Enquanto a
Bovespa, no mesmo período, teve desvalorização de 12%, o valor médio dos
imóveis em São Paulo subiu 195% (Fipe/Zap).
O acesso maior ao crédito,
pilar do lulismo, foi importante para isso. Mas ainda mais decisivo foi a
injeção de recursos públicos por meio do Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC) e do BNDES nas grandes construtoras. O BNDES financiou
a expansão e internacionalização das Cinco Irmãs (Odebrecht, Camargo
Correia, OAS, Andrade Gutierrez e Queiroz Galvão). Elas abriram capital
na bolsa, adquiriram um imenso banco de terras e expandiram seus
horizontes para outros ramos como a telefonia, a geração de energia
elétrica e a petroquímica.
Mas, diz a máxima: bonança
de uns, penúria de outros. O fortalecimento rápido e intenso do capital
imobiliário trouxe um alto preço a pagar aos trabalhadores urbanos.
Enquanto as corporações imobiliárias faturavam bilhões, ampliando sua
teia de investimentos nas grandes cidades do país, os moradores destas
regiões foram arrastados por um turbilhão.
Na medida em que os
construtores, ao investirem em terras o dinheiro das ações vendidas com a
abertura de capital, tornaram-se também os maiores proprietários de
imóveis urbanos e passaram a ter em suas mãos a faca e o queijo da
política urbana. Se têm as terras, podem definir o que farão em cada uma
delas. Aqui, um condomínio de elite, ali um novo shopping, acolá
habitação popular. Ou seja, o direcionamento da expansão e remodelação
urbana tornou-se ainda mais refém dos interesses privados e de mercado.
Com isso, regiões inteiras
foram reconfiguradas sem aviso prévio aos que sempre estiveram por lá.
Bairros antes periféricos viram, atônitos, torres serem erguidas ao seu
lado. Novos moradores, novo perfil, novos preços. Com os investimentos
de mercado veio a inflação descontrolada do valor dos aluguéis. Alguns
bairros da periferia paulistana viram nos últimos cinco anos o valor
médio do aluguel dobrar ou triplicar.  O mesmo se deu no Rio de Janeiro e
em outras capitais.
Assim cresceu o déficit
habitacional, configurado por uma explosão no valor dos aluguéis
inclusive nas periferias urbanas. O morador do Campo Limpo (zona sul) ou
Itaquera (zona leste) que pagava 400 reais de aluguel viu o boleto
aumentar para 700 reais, mas o salário não. Das três situações
seguintes, foi forçado a uma: ou comprometeu mais da metade dos ganhos
familiares para arcar com este aumento; ou teve de ir viver em condições
muito precárias, ainda mais longe; ou recorreu ao cômodo do fundo da
casa de um parente, ao barraco em uma ocupação.
Nos três casos passou a
fazer parte da cifra do déficit habitacional. Assim a lógica explica a
matemática. Mesmo 1 milhão de novas casas não é capaz de compensar as
outras 2,5 milhões de famílias jogadas à própria sorte pela ofensiva do
capital imobiliário. Podem construir mais 2 ou 5 milhões e o déficit
continuará aumentando se a política urbana não estabelecer limites às
forças do mercado, ao invés de estimulá-las.
Mas é o progresso! Como ir
contra ele? Seremos contra a ampliação do metrô, que também gera
especulação? Contra urbanização de favelas? Melhorias urbanas em geral? O
capital costuma sempre jogar a pecha do atraso em qualquer obstáculo a
seu desenvolvimento.
É evidente que melhorias de
infraestrutura, serviços urbanos e condições de vida são imprescindíveis
e devem ser inclusive aceleradas de forma profunda. Mas junto a elas é
preciso vir medidas regulatórias do poder público para conter o capital
imobiliário e a expulsão dos trabalhadores para regiões ainda mais
periféricas.
A medida mais urgente para
parar com este trabalho de Sísifo é uma política de controle da elevação
dos aluguéis urbanos. Medida que, em tempos neoliberais, tem um ar
quase comunista. Mas que, aqui mesmo no Brasil, foi tomada em 1921 pelo
governo Epitácio Pessoa, que definitivamente não era comunista. Durante
os governos Vargas foi retomada por sucessivos decretos. Leis de
controle do aluguel vigoraram no país até o período militar, que
enterrou-as de vez.
Estabelecer o índice
inflacionário como teto para reajuste nos contratos de aluguel é algo
não apenas possível como urgente e necessário.
Assim como o é a aplicação
das diretrizes já estabelecidas pelo Estatuto das Cidades, em 2001.
Desapropriação compulsória, exercer o direito de preempção, dação em
pagamento, IPTU progressivo, enfim uma série de medidas de controle à
livre especulação que a legislação atual já permite.
As prefeituras e câmaras
municipais, responsáveis pela aplicação do Estatuto via Planos
Diretores, são, entretanto, frequentemente embaixadas do mercado
imobiliário. Maiores financiadoras de campanhas eleitorais do Brasil, as
construtoras têm muitos agentes públicos literalmente em seus bolsos.
Esperar que as mudanças partam daí é ilusão.
Enquanto o capital
imobiliário for o grande agente da remodelação urbana, livre de
regulamentações mais efetivas, qualquer política está fadada ao
fracasso. Aumentam os recursos para urbanização de favelas e saneamento,
mas novas favelas surgem em escala ainda maior. Aumentam a meta do
MCMV, mas a cada dia surgem novos sem-teto que não podem mais suportar
os aluguéis abusivos.
No caso do MCMV há ainda
seus problemas genéticos. Foi feito sob encomenda para salvar o setor
imobiliário diante da crise de 2008 e suas regras são por isso voltadas
para o interesse privado. Tem seus méritos, é verdade. Nunca volume tão
grande de subsídios foi direcionado à habitação popular na história
brasileira. A modalidade Entidades, apesar de com menos recursos e mais
burocracias, aponta também alternativas à lógica privatista. Mas de
forma geral o programa atende mais à lucratividade dos empresários que a
perspectiva de solucionar o déficit habitacional.
Vejamos como se dá este
processo. O MCMV estabelece um valor fixo por unidade habitacional que
destina para os empreendimentos. Em São Paulo, este valor é de 76 mil
reais. Ou seja, se uma construtora apresenta um projeto de mil
apartamentos, o valor repassado será de 76 milhões. Para repassar este
valor, o programa estabelece padrões mínimos: tamanho das unidades,
especificações técnicas, etc. Uma vez que o projeto cumpra estes
requisitos básicos será aprovado.
Se a construtora apresenta
um projeto de apartamentos de 39 m², que é o mínimo estabelecido para a
Faixa 1 (famílias com renda inferior a 1,6 mil reais), ou se apresenta
com 60 m² o valor pago pelo programa será o mesmo, 76 mil reais por
unidade. Ou seja, na medida em que os agentes dos empreendimentos são
construtoras, que buscam rentabilidade e não qualidade da moradia, é
mais do que óbvio que as moradias não terão 1 milímetro a mais que o
mínimo. Assim ocorre. O MCMV, portanto, estimula a habitação popular de
baixa qualidade.
Se a construtora tem um
terreno num bairro mais valorizado e com mais acesso a serviços e outro
no fundão da periferia, o MCMV irá repassar o mesmo valor por unidade
nos dois casos. Obviamente as construtoras estão destinando seus piores
terrenos para habitação popular. Estimulam com isso a periferização, o
crescimento da especulação imobiliária e a piora da qualidade de vida
dos trabalhadores. É isso que ocorre quando o interesse privado se
sobrepõe ao interesse social.
Pior ainda: mesmo com este
maná, os empresários brasileiros fazem manha, querem ainda mais e
chantageiam o governo, que não responde à altura. Historicamente, o
capital brasileiro acostumou-se ao capitalismo sem riscos, onde o Estado
deve mimá-los sempre mais. Por isso, como a lucratividade da Faixa 1 é
menor que da Faixa 2 (até 3,1 mil reais), apesar de ser elevadíssima,
seguram os projetos para Faixa 1.
Dado divulgado este mês pelo
Ministério das Cidades revelou que da meta do MCMV2, 75% das unidades
foram contratadas na Faixa 2 e apenas 15% daquelas previstas para a
Faixa 1. Nunca é demais lembrar que a tal Faixa 1 responde por mais de
70% do déficit habitacional brasileiro.
Assim podemos concluir sem
rodeios que enquanto não houver um enfrentamento ao setor imobiliário,
por meio de uma política urbana ousada e regulatória, as políticas
públicas de habitação e urbanização continuarão sendo desafiadas pela
matemática. O que o Estado der com uma mão o mercado tira com duas.
Guilherme Boulos é integrante da Coordenação Nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) e militante da Frente de Resistência Urbana; Natalia Szermeta é integrante da Coordenação Estadual do MTST e militante da Frente de Resistência Urbana;Ana Paula Ribeiro é integrante da Coordenação Estadual do MTST e militante da Frente de Resistência Urbana.

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