O municipalismo do Barcelona em Comum: da transição a uma institucionalidade constituinte

link

Por Alexandre F Mendes, UniNômade
O municipalismo do Barcelona em Comum: da transição a uma institucionalidade constituinte
A recente vitória eleitoral da plataforma cidadã “Barcelona em Comum”, conquistando 11 conselheiros e a indicação de Ada Colau como prefeita da capital da Catalunha, pode ser analisada de diversas formas e a partir de muitos pontos de vista. Preferimos, em primeiro lugar, considerá-la não um “resultado” de lutas constituintes como o 15M, as mareas, a Plataforma dos Atingidos pelas Hipotecas (PAH) etc., mas como uma expressão e um momento importante, repleto de riscos e desafios, do atual ciclo político espanhol, europeu e também global. Longe de qualquer lógica purista que estabeleça princípios rígidos e pré-estabelecidos para a ação política, a multidão decidiu experimentar a tática eleitoral como um instrumento disponível entre outros, ofertado pela móvel caixa de ferramentas de luta contra a gestão neoliberal da crise a partir de um falido bipartidarismo.
É evidente o paralelo com a conjuntura brasileira, também sufocada por uma crise política, econômica e ambiental, gerida por um “Chicago boy” indicado pelo governo eleito através de uma falsa retórica de esquerda. Mas na Espanha, diferentemente do Brasil, o desejo de transformação virou as costas para o PSOE (correspondente do PT), ultrapassou as tendências à repetição do ativismo, e buscou um rumo próprio. A aposta é imensa: como investir no terreno vertical das instituições existentes e das disputas eleitorais, sem abrir mão da dimensão transversal, cooperativa e horizontal dos movimentos constituintes? Como inundar a caduca institucionalidade das democracias representativas ocidentais com novas instituições do comum que possam corresponder às formas de vida e de interação que já são praticadas nas cidades e metrópoles?
Nessa linha, outra aproximação com o contexto do Brasil por ser estabelecida. Ela diz respeito às propostas de transformação democrática da cidade e de produção do urbano que emergem como agenda central do BCN em Comum, afinada com a própria biografia da Ada Colau e seu ativismo na PAH, uma rede que obteve importantes vitórias na defesa da moradia e na afirmação de um “direito à insolvência” – o direito de não pagar pela crise provocada pelas oligarquias financeiras. Da luta contra os efeitos da crise, surge o desafio de construir de um “novo municipalismo”, concebido não pela formação de cidade-pátria ou a emergência isolada de um poder local democrático, mas através da possibilidade de constituição de uma plataforma transversal cidadã compartilhada entre várias iniciativas municipalistas: uma ampla teia de institucionalidades constituintes.
A leitura da trajetória das políticas urbanas e de gestão democrática realizada pelos ativistas do Guanyem e do BCN em Comum mostra que qualquer semelhança com a nossa realidade não é mera coincidência: com a derrota do franquismo e a transição de 78, floresce uma nova base social que é responsável por candidaturas inovadoras, por conquistas em termos de infraestrutura e direitos urbanos e pela formação de instâncias de participação social na cidade. O neoliberalismo, por sua vez, penetra no interior do trajeto e reorganiza a transição política na direção de novos arranjos públicos-privados que alimentam um ciclo de especulação imobiliária, projetos urbanísticos impostos “de cima para baixo” e esvaziamento da institucionalidade participativa.
O esforço, então, é para romper com o “municipalismo de transição”, que marca o regime de 78, e inventar um “municipalismo do comum”[i], conduzido pelas mareas de várias cores que saíram na rua por uma gestão comum da saúde, da educação, do conhecimento, da água, dos bancos, dos serviços sociais e urbanos. No que se refere à participação social, a proposta é não apenas reorganizar os confusos e ineficazes conselhos temáticos e territoriais, mas garantir que os bairros desenvolvam, de forma transversal, experiências de autogestão e coprodução do urbano que serão consideradas vinculantes para a administração municipal. As propostas de radicalização democrática também contam com a adoção de uma renda mínima garantida para todos, a eliminação da precarização, a valorização da “economia do cuidado”, além da auditoria da dívida e a formação de bancos geridos democraticamente.
Poderíamos elencar outras dezenas de boas pautas que foram levantadas pela candidatura do BCN em Comum (outras nem tanto, voltadas ainda para o saudosismo da grande indústria), mas nos interessa retornar ao contexto brasileiro. A análise do nosso “municipalismo de transição” é parecida: o regime de 88 fortaleceu o município no campo financeiro e administrativo; uma nova arquitetura de participação surge, multiplicando as instâncias participativas; os movimentos sociais garantem a construção de políticas setoriais e prefeituras são conquistadas por propostas políticas inovadoras. O neoliberalismo penetra e se difunde no mesmo ritmo, trazendo o já conhecido receituário de empreendedorismo urbano e autoritário que precede a crise. O esgotamento da transição é evidente e o diagnóstico é de um “impasse” nas políticas urbanas.
Aqui vale acrescentar que o urbanismo social, responsável pela formulação crítica à esquerda desde a década de 1960, mostra-se totalmente insuficiente para percorrer o terreno do neoliberalismo de forma criativa e antagonista. Ainda presos no ideário nacional-desenvolvimentista, buscando pactos redistributivos via planejamento centralizado, boa parte dos urbanistas da transição não conseguem olhar para as novas práticas de produção do comum e para as novas formas de organização política que surgem nas redes e nas ruas. Nem ao menos o conceito latino-americano de “bem viver” penetra nas análises para buscar formas radicalmente alternativas de desenvolvimento urbano. Ainda vivemos os tempos do encontro de arquitetura do Quitandinha e o economista mais festejado é Celso Furtado.
A nostalgia de uma regulação estatal-socialista para o “caos” capitalista nos coloca ainda mais profundamente no impasse. A ineficácia dos instrumentos apresentados como aptos a promover as transformações necessárias não é fruto apenas da “correlação de forças”, mas da própria análise de quais seriam as forças existentes voltadas para a mudança democrática. Reconhecer o terreno do comum, ou de qualquer outro nome que se dê ao fenômeno, não é aderir ao pensamento de um ideário ou um filósofo específico, é investigar o campo de mutação do próprio capitalismo contemporâneo, que direciona seus mecanismos de exploração buscando apreender a vida urbana como um todo.
O deslocamento do “municipalismo de transição” para novas formas de democracia urbana, pressupõe o reconhecimento desse terreno e uma inventividade capaz de realizar um conflito a ser operado por dentro dele. Na definição tradicional do direito à cidade (tomamos como exemplo o Fórum Nacional da Reforma Urbana), uma nova interpretação das “forças” indica ao menos três inflexões:
(a) pensar o comum para além da função social da propriedade, caminhando da regulação pública-estatal para a auto-organização do espaços, recursos e serviços sociais e urbanos;
(b) pensar a participação social como coprodução e ocupação do urbano, para além do ideário cívico/deliberativo e da delegação e representação nas instâncias participativas. Reconstruir a experiência da participação a partir das novas práticas de encontro, comunicação e organização da decisão;
(c) pensar as lutas da cidade/metrópole e as novas plataformas de mobilização, transversais e em rede, para além da forma-movimento e da forma-partido tradicionais.
Como no 15M espanhol, o desejo de realizar estas mudanças estavam presentes em junho de 2013 (do ponto de vista da conservação, talvez resida nesse desejo o grande “pecado” das jornadas). Como era possível antever, a participação do governo federal e de boa parte do PT na destruição do movimento de junho de 2013 conduziu o cenário para uma situação de aporia infinita e total estupor. Em plena crise e ajuste neoliberal, os movimentos não conseguem dar passos nem destituintes (“fora Dilma, fora todos”), nem constituintes (“sim, nós podemos”).
Se na Espanha, o 15M começa a derrotar o falacioso bipartidarismo do regime de 78 (PP vs PSOE, com o fundo monárquico), aqui, junho de 2013 continua derrotado pelo regime político pós-88 (PT vs PSDB, com o fundo pemedebista). E a pior perda é a subjetiva. O imaginário produzido permanece aquele da campanha eleitoral: “é preciso defender o menos pior” – como se onda conservadora não representasse o efeito imediato da própria derrota de junho.
A vitória do BCN em Comum é compartilhada por muitos ativistas brasileiros porque aponta concretamente para um deslocamento (mesmo que provisório) realizado do campo do medo para a esperança, da aporia para outros caminhos possíveis, do híbrido desenvolvimentismo/neoliberalismo para as políticas do comum, do “municipalismo de transição” para o renovação de um municipalismo baseado na capacidade de irradiação transversal, de cooperação em rede e de uma interdependência desde baixo que pode gerar efeitos massivos e potentes na luta contra a gestão neoliberal da crise.
As experiências de uma Barcelona-em-comum parecem, portanto, bem distintas daquelas repisadas lições de “renovação” alavancadas pela Barcelona-Olímpica. Enquanto a última é importada como modelo para uma modernização baseada num novo regime de acumulação, a primeira pode ser digerida antropofagicamente para alimentar a nossa imaginação política. Ela nos indica que é possível buscarmos institucionalidades constituintes de novo tipo, que permitam a abertura de novos espaços democráticos no interior da crise para além do engodo bipartidarista. Ao grande “não” restaurador que interdita as tentativas de ultrapassarmos o abismo da miséria política, ela contrapõe um sonoro “sim”.
Sim, em comum, todos nós podemos.

Alexandre Fabiano Mendes é professor de direito da UERJ, participa da rede Universidade Nômade e dos Círculos de cidadania – Rio de Janeiro.
Nota

Comentários