Estatuto da Metrópole: o gargalo do financiamento

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Por Henrique Botelho Frota*
Com algumas exceções, a questão do planejamento metropolitano não esteve entre as prioridades da agenda da política urbana nacional das duas últimas décadas. Embora o projeto de lei que resultou no Estatuto da Metrópole (Lei 13.089) estivesse tramitando desde 2004, não se viam manifestações do movimento de reforma urbana, de governos ou de entidades técnicas reivindicando essa pauta. Por isso, sua sanção, em 12 de janeiro passado, causou certa surpresa.
Entretanto, superado o momento inicial, é preciso compreender que novos desafios e problemas essa legislação impõe. A elaboração dos chamados Planos de Desenvolvimento Urbano Integrado até janeiro de 2018, a organização de um arranjo institucional que viabilize a governança e a efetivação de instrumentos urbanísticos como a operação urbana consorciada interfederativa são exemplos de questões ainda nebulosas. E, certamente, a lista de problemas difíceis não estaria completa sem o tópico do financiamento.
Os conflitos entre estados e municípios em torno da questão metropolitana, alguns dos quais judicializados, têm como pano de fundo a disputa por competências e, consequentemente, por mais recursos.
O deslocamento de atribuições do âmbito local para o arranjo regional, a partir da compreensão do que sejam as funções públicas de interesse comum, demandará uma solução de financiamento para viabilizar as obras e serviços metropolitanos.
Na proposta original do Estatuto da Metrópole, havia a previsão de um Fundo Nacional de Desenvolvimento Urbano Integrado. Os artigos, entretanto, foram vetados pela Presidente da República. As razões já foram discutidas em artigo da Profa. Luciana Royer publicado aqui no blog. Mas, ainda que não tivesse ocorrido o veto, o fundo não traria uma solução para o problema do financiamento, já que boa parte dos seus recursos dependeria de transferências voluntárias da União ou de outros entes. No atual contexto de retração econômica e corte de despesas públicas, certamente esse fundo não seria prioridade, o que revela a inconsistência e a insegurança do modelo. Mais do que isso, o fundo nacional proposto concentraria os recursos na esfera federal, indo na contramão da descentralização das receitas.
Independente da existência de um fundo nacional, o modelo baseado simplesmente em repasses voluntários não vincula os entes a transferirem percentuais mínimos do seu orçamento nem assegura que todos contribuirão. Portanto, é incapaz de garantir a continuidade dos serviços metropolitanos. Além disso, no âmbito do financiamento, esse modelo equipararia as regiões metropolitanas aos consórcios públicos, o que não faz sentido diante das diferentes naturezas jurídicas e competências de cada um.
Uma saída apontada pela lei aprovada foi propor instrumentos como a operação urbana consorciada e as parcerias público-privadas interfederativas, que se baseiam na captação de recursos junto à iniciativa privada. As experiências de utilização desses mecanismos pelos municípios, entretanto, têm revelado enormes dificuldades em promover o interesse público. Projetos de habitação de interesse social e regularização fundiária de população de baixa renda, por exemplo, encontram pouca receptividade em arranjos dessa natureza junto ao setor privado.
Ventila-se também que os recursos das regiões metropolitanas seriam decorrentes do pagamento de tarifas pelos usuários dos serviços públicos de interesse comum. Certamente essa é uma fonte provável de financiamento. Entretanto, ela não é suficiente, dado que muitos dos serviços prestados, como os de mobilidade, são deficitários e dependem de aportes públicos.
Uma quarta via estaria na reforma tributária. O artigo 154 da Constituição permite que a União institua novos impostos, desde que não tenham o mesmo fato gerador dos impostos já existentes. Portanto, em tese, é juridicamente possível que seja criado um tributo federal novo e que sua arrecadação seja destinada às regiões metropolitanas. Entretanto, a hipótese parece bastante remota diante das atuais crises política e econômica que abalam o país. Em um cenário de recessão e de maiores índices de inflação, o aumento da carga tributária não só reduziria a capacidade de investimento da iniciativa privada como criaria um ônus político que o governo federal provavelmente não está disposto a assumir.
Se a instituição de um imposto novo não se revela factível, o caminho poderia estar na redistribuição das atuais receitas tributárias. Esse, por sinal, é um dos pontos previstos na Proposta de Emenda à Constituição apresentada por um grupo de parlamentares sob a liderança do senador Aloysio Nunes (PSDB-SP) no ano passado – a PEC 13/2014. Se aprovada com a redação atual, a proposta criaria um novo artigo na Constituição, autorizando as leis complementares estaduais instituidoras de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas ou microrregiões a redirecionarem recursos de receitas tributárias para os arranjos regionais. Nesse caso, estariam em jogo as repartições de receitas dos artigos 157, 158 e 159 da Constituição, o que inclui os recursos do Fundo de Participação dos Estados (FPE), do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e da arrecadação do ICMS e do ITR, por exemplo.
A solução proposta não é nada pacífica, especialmente pela ótica dos municípios. Isso porque a lei complementar estadual trataria de recursos que não pertencem ao Estado, impondo aos entes locais uma redução de receitas em favor da instância metropolitana. Os municípios sequer participariam do processo legislativo que resultaria nessa medida.
Por outro lado, a PEC não estabelece nenhum parâmetro ou percentual máximo de recursos que poderiam ser afetados pelas leis estaduais. Isso abre uma grande lacuna para deliberação do Legislativo estadual, podendo gerar situações discrepantes de um caso para outro. Além disso, abre-se um campo de disputas pela distribuição dos recursos, colocando os estados em situação privilegiada em relação aos municípios, o que pode levar a um comprometimento da autonomia destes últimos.
Os repasses de receitas previstos nos artigos 157, 158 e 159 da Constituição são fundamentais para a maioria dos municípios no equilíbrio de suas contas. Não são poucos os casos em que as gestões locais dependem significativamente desses recursos, especialmente nos pequenos e médios municípios.
Para se ter uma ideia, o município de São Paulo, integrante da mais rica e populosa região metropolitana do país, recebeu mais de 190 milhões de reais pelo FPM em 2014 (cerca de 0,2% de suas receitas no mesmo ano). Já São João da Baliza, um dos três municípios integrantes da Região Metropolitana do Sul de Roraima, ilustra o extremo oposto. Com uma população de cerca de 7.400 habitantes, o município recebeu mais de 2,4 milhões de reais em 2014 pelo FPM. Isso corresponde a mais de 10% das receitas municipais naquele ano.[1] Nas dezenas de regiões metropolitanas brasileiras, são mais comuns casos como o de São João da Baliza do que o de São Paulo. Portanto, pode-se antever que as prefeituras resistirão em abrir mão de parte dessas transferências.
Em outras palavras, todas as vias de financiamento colocadas em pauta apresentam significativos entraves. Seja porque não garantem nenhuma segurança de continuidade – transferências voluntárias –, seja porque colocam a solução dos problemas em um setor privado descomprometido com o interesse público, ou porque mexem com o já desequilibrado sistema tributário e financeiro nacional, o que ocasionará forte resistência política.
A questão que fica é como viabilizar uma estrutura de governança metropolitana com tantas atribuições e nenhuma garantia efetiva de recursos públicos. A saída, certamente, não estará na adoção de um modelo exclusivo de financiamento, mas sim na integração de múltiplas fontes. E, sobretudo, a União deverá reformular suas diretrizes de financiamento. Atualmente já existe uma orientação no Ministério das Cidades para que sejam priorizadas as regiões metropolitanas, mas os recursos são dirigidos aos municípios individualmente. Será necessário redirecioná-los para os arranjos regionais em razão das funções públicas de interesse comum. Como detentor do maior orçamento entre os entes federados, caberá ao governo federal capitanear esse processo.
*Henrique Botelho Frota é advogado. É também secretário-executivo do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico – IBDU.
[1] Dados obtidos com base nos relatórios do Tesouro Nacional. Disponíveis aqui.

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