OS LARANJÕES E A LUTA DOS GARIS E DA CIDADE -- Por Círculo de cidadania Rio de Janeiro

OS LARANJÕES E A LUTA DOS GARIS E DA CIDADE
-- Por Círculo de cidadania Rio de Janeiro

O morador do Rio de Janeiro já deve ter percebido os containers que chamam a atenção na calçada. Os "laranjões", como são chamados, foram introduzidos pela Comlurb em maio deste ano em vários bairros da cidade. A previsão anunciada pela empresa é que, até o final de 2015, cerca de 5.000 laranjões sejam dispostos, com capacidade de 900 kg cada. Associados a caminhões equipados com braços hidráulicos, os laranjões substituem o trabalho humano direto, hoje efetuado por trabalhadores da companhia municipal e suas terceirizadas. É o processo conhecido por "mecanização" da atividade da coleta de lixo. Os próprios cidadãos devem colocar o lixo nos containers que a seguir são retirados mecanicamente pelo equipamento.

A mecanização da coleta do lixo, em 2015, coincide com a perseguição política de trabalhadores da empresa. A "coincidência" não é por acaso. Depois das greves de 2014 e 2015, das conquistas de melhores salários, visibilidade e dignidade, vários garis sofreram medidas retaliatórias, que vão desde transferências a demissões, até a abertura de inquéritos intimidatórios. É nesse cenário de pressões salariais e crescente auto-organização da categoria que a mecanização aparece com força, em paralelo com a terceirização.

No "Capital", Marx descreve duas dinâmicas de exploração do trabalho, que se articulam no processo mais amplo de produção do capital. Uma é a do mais-valor absoluto, relacionada com a jornada de trabalho, com o tempo medido quantitativamente. Outra é a do mais-valor relativo, relacionada com a intensificação da produtividade, com o caráter qualitativo do tempo, mediante a introdução de processos de mecanização e automação. O drama do capitalismo é que o aumento de produtividade não reverte para o trabalhador; ao contrário, ele é usado para aumentar a taxa de lucro e neutralizar a organização dos trabalhadores, exercendo a contenção das pressões salariais.

É como se as máquinas estivessem sendo usadas contra o trabalhador e não a serviço deles. Tal tendência já foi tema de inúmeras obras da imaginação. No filme "Metrópolis", de Fritz Lang, os trabalhadores são escravizados por máquinas e forçados a viver no subsolo da civilização. No mais alegre "Tempos Modernos", o célebre personagem de Chaplin é engolido por engrenagens gigantes e quase vira um produto da linha de montagem.

No entanto, é preciso evitar cair numa crítica reativa das máquinas, como se não pudessem servir à descarga do imenso labor humano envolvido no trabalho braçal e repetitivo. Na coleta manual do lixo, o trabalhador carrega uma média de 8 toneladas por dia de material geralmente contaminado. É um trabalho extenuante, insalubre e perigoso. Por isso que a introdução das máquinas, para Marx, tem um caráter duplo: tanto pode ser positiva quanto negativa, dependendo de como elas são introduzidas e quem comanda a sua operação.

Noutro texto, o "Fragmento sobre as máquinas", Marx descreve como o progressivo afastamento do homem do trabalho direto, a fim de ocupar funções de supervisão e gestão, causa uma contradição interna na produção do capital. A composição orgânica entre capital fixo (meios de produção) e capital variável (trabalho vivo) se torna insustentável para manter a lei do valor, isto é, se dissolve a correlação entre tempo de trabalho e valor. O resultado disso, em longo prazo, é que o valor deixa de estar indexado pela jornada de trabalho (mais-valor absoluto), expondo-se pelo que é: uma relação de força, de mando capitalista sobre o trabalho. Simetricamente, o salário não mede mais a quantidade de trabalho individual, mas a força da classe organizada em sua recusa da exploração.

Voltando ao caso dos laranjões da Comlurb, no Rio de Janeiro, isto nos leva a concluir que:

1) A mecanização da coleta foi uma resposta repressiva de quem lucra com o lixo às lutas dos garis nos últimos anos, portanto, é uma questão associada diretamente à transferência e demissão de trabalhadores e deve ser abordada conjuntamente;

2) No fundo, foram as lutas dos garis que determinaram a mecanização da coleta e/ou a aceleraram, na medida em que forçaram os donos da empresa a buscar soluções alternativas diante da crescente pressão salarial;

3) O problema não consiste no fato que a coleta passe a ser mecanizada, isto na verdade é ainda mais um avanço dos garis em seu processo de conquista de dignidade, mas sim, no fato que as máquinas estão sendo utilizadas contra o trabalhador e não a serviço deles, estão sendo usadas para garantir as demissões e propiciar novas;

4) A disputa da tendência da mecanização, e não sua negação reativa, portanto, passa a ser o terreno das lutas dos garis para seguir obtendo conquistas;

5) Essa disputa a travar-se envolve, em primeiro lugar, atrelar a mecanização à necessária readmissão dos garis e fim das medidas retaliatórias e, em segundo lugar, à requalificação do trabalho dos garis e a própria organização social do trabalho da coleta;

6) É uma disputa que transborda da categoria para envolver a cidade do Rio de Janeiro como um todo.

Não estariam todos os cidadãos interessados em contar não somente com trabalhadores para fazer a tradicional coleta do lixo, mas com garis qualificados como agentes de saúde ambiental, à frente das máquinas, e que possam, dessa maneira, se preocupar com as múltiplas dimensões de qualidade de vida nos bairros, nas praças, nas escolas, nos hospitais, nas praias?

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PS. Texto gerado como resultado das oficinas de autoformação realizadas entre os Círculos de cidadania no Rio de Janeiro, que contou com a participação de garis e apoiadores.

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