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“As regularizações fundiárias estão sendo feitas sem critérios e dadas a quem não precisa socioeconomicamente. Isso premia e mostra que vale a pena ocupar irregularmente, grilar. Não exclui a posse violenta, clandestina, precária ou de má-fé”, afirmou Dênio Augusto Moura, promotor titular da 1ª Promotoria de Preservação do Patrimônio Urbanístico do Ministério Público do DF e dos Territórios (MPDFT). A crítica foi feita durante o V Seminário Nacional de Política Urbana e Ambiental, realizado na última quarta-feira (16/08), em Brasília. O evento foi promovido pelo CAU/BR em parceria com a Confederação Nacional de Municípios (CNM).
“A MP 759, que virou lei, nos pegou de surpresa, alterando todo o arcabouço jurídico sobre regularização fundiária, e tem aspectos formalmente e materialmente inconstitucionais. Houve uma preocupação excessiva com a titulação em detrimento de outras questões: ordenamento territorial, mobilidade urbana, meio ambiente, patrimônio público e defesa civil. Não adianta entregar um terreno escriturado se a cidade alaga todo ano. A titulação tem que ser buscada, mas não é primordial”, argumentou o membro do Ministério Público. “O que estou vendo é que essa lei permite que os governantes que estão no poder agora entreguem títulos, mas colocar a mão na massa, fazer projetos e infraestrutura, vai sobrar para os futuros, que vão pagar a conta”, afirmou Moura.
“Será que daqui para frente vai ser diferente ou precisaremos de mais uma lei de regularização fundiária nos próximos anos?”, questiona o promotor. “Está sendo aplicada mais uma vez a velha política do fato consumado. Situações similares aconteceram com o Código Florestal e o Minha Casa Minha Vida. É um pragmatismo que faz com que a qualidade das nossas cidades piore”.
Para o diretor do Departamento de Assuntos Fundiários do Ministério das Cidades, Sílvio Figueiredo, que também participou do evento, a MP 759, que se tornou a Lei 13.465/2017, trouxe melhorias ao processo de regularização fundiária. “Houve um avanço em relação à legislação anterior: hoje exige-se um cronograma físico de obras, uma preocupação com conformidades urbanas e ambientais, o que não havia na lei passada”.
Sobre a falta de diálogo com a sociedade para a redação da norma, apontada pelo CAU/BR e das demais entidades de arquitetos e urbanistas (leia aqui a manifestação pública), o representante do governo federal argumentou que “a legislação não saiu da cabeça de uma pessoa, ela veio de uma base existente para resolver problemas recorrentes no país. Não é preciso consultar a comunidade para saber o que é necessário. Isso está mais que claro para o governo. Agora estamos elaborando o decreto que vai regulamentar a lei, e convidamos a sociedade a nos enviar sugestões”.
O representante do governo federal reconheceu, entretanto, que uma parte da legislação ficou perdida com a publicação original na forma de Medida Provisória. “Quando redigimos o projeto, havia um capítulo específico para crimes e penas, mas isso não pode ser tratado no âmbito de uma MP e acabou ficando de fora do texto”.
Assistência técnica esbarra na burocracia
A discussão sobre a importância da assistência técnica de interesse social nos processos de regularização fundiária também foi um dos destaques do V Seminário Nacional de Política Urbana e Ambiental. “Hoje, em vez de fazer projeto, fazemos ‘pós-jeto’. Precisamos inverter o processo e temos consciência disso”, afirmou Gilson Paranhos, presidente da Companhia de Desenvolvimento Habitacional do DF (Codhab-DF).
De acordo com Paranhos, que apresentou o trabalho de assistência técnica feito exclusivamente em regiões periféricas de ocupação irregular na capital do país, o principal entrave para que a regularização e a assistência caminhem juntas é o excesso de burocracia. “Demorei um ano de meio para aprovar o projeto de uma residência dentro do Governo do Distrito Federal. Enquanto isso, milhares de casas foram construídas irregularmente”, afirma. Para ele, não deveria haver a necessidade de aprovação de projetos por parte dos governos. “Ninguém tem que aprovar projeto de arquiteto e urbanista. Cada profissional é responsável pelo seu trabalho”, defende.
“Estamos preocupados com o ‘sexo dos anjos’, a redação exagerada de normas. Hoje, todos os hospitais da Rede Sarah não seriam aprovados se os arquitetos e urbanistas não tivessem ignorado as normas vigentes. No Brasil, segundo o CAU, 93% das obras não têm arquiteto e urbanista responsável – é com elas que precisamos nos preocupar”, afirma. “Lá na periferia o Código Penal não é respeitado, imagina se o Código de Edificações é. Temos que ter isso em mente”, argumenta o presidente da Codhab.
Myrian Cardoso, professora e coordenadora técnica do Projeto de Regularização Fundiária Urbana Moradia Cidadã da Universidade Federal do Pará (UFPA), também defende que o arquiteto e urbanista precisa se aproximar de fato da comunidade das áreas periféricas da cidade. “Como escreveu Adilson Dallare, o urbanismo que ignora a pobreza é ignorado por ela”, afirma.
Cardoso relatou a experiência extraída de seu trabalho na assistência técnica para regularização de áreas antes federais em municípios do nordeste do Estado do Pará, feita em parceria com o Ministério das Cidades. De acordo com ela, a legislação federal ignora as diferenças entre as realidades do país. “A regularização fundiária e a assistência técnica precisam caminhar juntas, mas as imposições, encargos e formalismos da lei federal não costumam levar em consideração as diferentes realidades no Brasil, especialmente a dos pequenos municípios da Amazônia Legal”, explica.
Municípios sem dinheiro
A falta de recursos dos municípios é um dos principais obstáculos ao desenvolvimento urbano e à implementação da Nova Agenda Urbana no Brasil na visão dos participantes do V Seminário Nacional de Política Urbana e Ambiental. “Nossas cidades são pequenas e não tem estrutura técnica. Os vereadores são nossos ‘arquitetos e urbanistas’ e planejam as ruas. A iluminação é feita por eletricistas. Não tem planejamento e eu quero isso para o meu município”, afirma Cácio Adorno, prefeito de Mossâmedes, município goiano de 5 mil habitantes.
Para Wilson de Andrade, presidente do CAU/MT, “o prefeito Cácio simboliza a dificuldade da realidade brasileira na maioria dos municípios do país. Temos que deixar de compor colegiados e audiências públicas para apenas homologar decisões e passar a construir realmente as decisões em conjunto com a população e a sociedade”.
Lana Jubé, coordenadora da Comissão de Política Urbana e Ambiental do CAU/BR, comemorou a participação do prefeito e dos demais representantes dos municípios. “88% das cidades brasileiras têm menos de 50 mil habitantes, e é desses munícipes, que são pessoas simples, que queremos proximidade. Queremos construir cidades com vocês”.
José Carlos Matos, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), acredita que o problema só será resolvido com “um novo pacto federativo, em que o município tenha capacidade de planejar a cidade”. De acordo com o cientista social, “a dificuldade em pensar uma agenda municipal está na dependência dos repasses dos governos estaduais e federais, nos controles de parte do território por governos estaduais e federais e na ausência da escala regional de planejamento”.
O presidente do CAU/MS, Osvaldo Abrão, concorda que é preciso redistribuir a arrecadação pública. “Se todas as riquezas são produzidas nas cidades, porque 19% apenas, a menor fatia, fica nos municípios? O cerne do problema é que as cidades precisam se empoderar de recursos. É preciso haver uma repactuação das riquezas nacionais”, defende.
Na visão de Nabil Bonduki, professor da Universidade de São Paulo (USP) e ex-vereador de São Paulo, “as políticas urbanas estavam muito centradas nas grandes cidades e regiões metropolitanas e os instrumentos urbanos propostos não alcançam pequenas e médias cidades. Esses municípios estão fora da lógica do Estatuto da Cidade, do Estatuto da Metrópole. Essas políticas específicas não consideraram nossa diversidade urbana”.
Programas padronizados para todo o país, seguindo o pesquisador, não deram certo. “Os municípios vivem com o pires para o governo federal e às vezes o recurso vem para áreas não consideradas importantes naquele contexto local”.
Karla França, representante da Confederação Nacional de Municípios (CNM), afirma que o problema também é de comunicação entre as entidades e as prefeituras. “As discussões que estamos tendo aqui não chegam, em uma linguagem e abordagem adequada, aos prefeitos e à população das pequenas cidades. Que não percamos a oportunidade, por meio dos organismos aqui representados, de capilarizar o debate e o conhecimento”.
Cultura do carro
Os problemas de mobilidade urbana, que atingem pequenas e grandes cidades, também foram abordados nos painéis do V Seminário Nacional de Política Urbana e Ambiental. Na opinião de Alain Grimard, oficial sênior e ex-diretor do Escritório Regional para América Latina e Caribe da ONU-Habitat, “estamos em um cenário onde o shopping é tido como o locus da reunião social, porque não há espaço público. O shopping é a rua artificial. Nele, o cidadão é visto como consumidor. Junto a isso, os condomínios fechados, que representam a privatização da segurança, são a prova do fracasso social”.
De acordo com o coordenador da ONG Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte (MDT), Nazareno Stanislau, a “cultura do carro” é o principal obstáculo ao desenvolvimento da mobilidade urbana no Brasil. “Temos uma política no Brasil que é a do uso e propriedade do automóvel como política subsidiada pelo estado. É uma inversão de valores. Se um dia todo mundo tiver um carro a gente não sai mais de casa”.
Para Santiago Martin Gallo, consultor da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), as soluções para mobilidade e a habitação devem ser pensadas dentro do contexto social mais amplo. “A forma de vida e de consumo que vivemos é insana. Precisamos ter uma visão holística, sair dos compartimentos estanques que nos ensinaram na faculdade. A solução para as pessoas não está só na Arquitetura e no Urbanismo, mas está na saúde, na economia, no direito, na antropologia”.
Luciano Guimarães, suplente da Comissão de Política Urbana e Ambiental do CAU/BR, acredita que os arquitetos e urbanistas devem trabalhar de forma integrada na gestão urbana. “Temos que trabalhar com a transversalidade das políticas públicas. Não vamos resolver os problemas da UTI enquanto não resolvermos os problemas do trânsito, especialmente das motos. Não é possível trabalhar a cidade de forma departamentalizada”.
Parceria com a Confederação Nacional de Municípios
O presidente do CAU/BR, Haroldo Pinheiro, celebrou a parceria com a CNM, que promove a aproximação dos arquitetos e urbanistas com os prefeitos e vices. “Quero manifestar minha alegria de ver a proximidade do nosso Conselho com a CNM. O Brasil tem um dos conjuntos de leis para tratar as questões urbanas e sociais das mais vanguardistas do planeta, mas que precisa ser otimizado e efetivado”, afirmou.
“Fazer esse seminário na casa dos munícipes é uma coisa fundamental. Temos que afinar essa parceria entre nós, que trabalhamos no planejamento das cidades, com os munícipes – sejam secretários, prefeitos ou servidores”, defendeu Lana Jubé, coordenadora da Comissão de Política Urbana e Ambiental.
Na visão de Patrícia Luz, presidente do CAU/RN, é preciso levar a discussão da Nova Agenda Urbana aos municípios do interior do país. “A Rede Brasil Urbano, da qual participam vários presidentes de CAU/UF, tem percorrido vários estados para discutir a qualidade de vida nas cidades e conscientizar as pessoas dessa agenda”.
Carta à sociedade
Como resultado das discussões do V Seminário Nacional de Política Urbana e Ambiental, será elaborado um documento aos gestores públicos e à sociedade focado na necessidade de respeito às especificidades locais, na importância da participação cidadã e na necessidade de integração institucional para a construção de projetos de cidade alinhados com a Nova Agenda Urbana, aprovada pelas Organização das Nações Unidas (ONU) em 2016.
Para Sanderland Ribeiro, coordenador da Comissão de Políticas Profissionais do CAU/BR, “a participação dos arquitetos e urbanistas nos municípios é muito importante, e hoje é muito pequena. Chegaremos ao melhor caminho para essa carta, para estimularmos a ideia de cidades melhores para o Brasil”.
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