Para enfrentar problema habitacional, é preciso combater analfabetismo urbanístico, defende Ermínia Maricato


Publicado em: novembro 13, 2017

Por Luís Eduardo Gomes
Professora aposentada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e uma das maiores especialistas em habitação e no tema da reforma urbana no país, Ermínia Maricato esteve em Porto Alegre na última semana participando de debates sobre o assunto e conversou com o Sul21 por telefone. Entre outros questionamentos, respondeu à indagação: É possível pensar em reforma urbana neste momento no Brasil? Qual seria o modelo a ser adotado?
Com passagens pela prefeitura de São Paulo, onde foi secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano (1989-1992), e pelo governo federal, onde foi Secretária Executiva do Ministério das Cidades (2003- 2005), cuja proposta de criação se deu sob sua coordenação, Maricato afirma que um dos primeiros passos é combater o analfabetismo urbanístico – expressão que costuma usar em suas palestras – da população, o desconhecimento de uma realidade em que as grandes cidades contam com grandes parcelas da população morando em situação irregular, o que traz consequências graves e altos custos não só para a área da ocupação, mas também para saúde, educação, segurança, saneamento básico, etc. “A gente discute como se o mercado desse conta de produzir a cidade, como se a cidade fosse representada pelos bairros de classe média e classe alta”, diz.
Para a professora, não há como negar a realidade de que, mesmo o programa de maior impacto de construção de unidades habitacionais já feito no Brasil, o Minha Casa, Minha Vida, teve resultados negativos, como a explosão nos preços dos imóveis e aluguéis e a expulsão das camadas mais pobres cada vez mais para a periferia das cidades. Apesar disso, Maricato se diz confiante de que é possível sim pensar em uma reforma urbana e mesmo que já é possível ver sementes de um novo modelo de cidade germinando em movimentos sociais de periferia, de mulheres, de negros, que podem dar frutos, se não num futuro próximo, a médio prazo.
Sul21 – O que é o analfabetismo urbanístico e quais as consequências dele?
Ermínia Maricato: A nossa sociedade constrói uma representação ideológica da cidade. O que é isso? É uma representação alienada e falsa. Coloca-se uma parte da cidade como se fosse o todo, como se fosse ‘a cidade’. Essa representação dá a entender que a população que mora ilegalmente, irregularmente, na não-cidade, como eu chamo, a cidade desurbanizada, é uma minoria, é pouca gente, e não é. Frequentemente, nós temos metrópoles em que a população que mora em casas auto-construídas, sem infraestrutura urbana, fora completamente da legislação urbanística, essa população às vezes é a maior parte da cidade e isso não é conhecido. Só na metrópole de São Paulo, temos 1 milhão de pessoas morando em área de proteção dos mananciais. É a região produtora da água da cidade. Existem leis federais, estaduais e municipais que não permitem a ocupação, mas acontece que essa população não tem alternativa, porque ela não consegue entrar no mercado e não é assistida pelas políticas públicas. Em algumas cidades, isso chega a 70% da população. A gente discute como se o mercado desse conta de produzir a cidade, como se a cidade fosse representada pelos bairros de classe média e classe alta. Então, a ideia é trazer a realidade da cidade, enquanto os veículos de comunicação do mainstream são os maiores divulgadores dessa representação falsa da cidade.
Sul21 – No ano passado, publicamos no Sul21 uma série de matérias sobre saneamento básico e tentamos descobrir o número de pessoas que moram em áreas irregulares, em áreas de mananciais em Porto Alegre, e não existe esse número. Não há levantamento oficial definitivo sobre isso.
EM: Mas pega os dados de coleta domiciliar de lixo, você vai chegar à conclusão de que o serviço é muito bom e quase universal. Você percebe, saindo de Porto Alegre, em qualquer cidade do Brasil, o que tem de lixo que não é coletado. Então, o analfabetismo urbanístico diz respeito a isso mesmo. A gente não conhece as nossas cidades. Fica muito fácil para a elite manter essa desigualdade escandalosa porque é como se os que moram mal, ilegalmente, por não terem alternativa, compulsoriamente ilegais – como eu costumo dizer -, fossem a minoria, como se isso fosse um apêndice, e não é. Se eu pegar a questão do esgoto, tem cidades que até, talvez seja o caso de Porto Alegre, a maior parte do esgoto seja coletado, mas o que é coletado não é tratado, na maior parte.
Sul21 – Também tem o problema de que consideram-se para a universalização do tratamento somente as áreas legais. Então, mesmo que se chegasse a 100%, milhares de pessoas não estariam assistidas.
EM: Acho que foi no final da década de 80 que mostrava que 25% da cidade de Porto Alegre era ilegal, isso para o município, não estou falando da região metropolitana, que é muito mais, onde você tem municípios dormitórios que chegam a 70%, a 80% de ilegalidade. Porque a legislação também é muito detalhista. Você tem lei de parcelamento do solo, lei de zoneamento, código de obras e edificações, posturas do plano diretor, legislação ambiental, quer dizer, é muito difícil que a população pobre consiga se inserir e fazer algo dentro das normas. A lei é decorrência de uma sociedade patrimonialista, que tem um discurso distante da sociedade. Mas o problema central é que o mercado é restrito. É muito importante a gente apontar isso, é o mercado que restringe, que não chega nem na classe média, se eu considerar que quem ganha 5, 6 salários mínimos é classe média no Brasil. Por que o Minha Casa, Minha Vida deu subsídio para quem ganhava até 6 salários mínimos, porque essas famílias não conseguem entrar no mercado. E atualmente o mercado está dando ordens. O secretário das subprefeituras de São Paulo é o vice-presidente de uma incorporadora.
continua no link

Comentários