Muito mais que um simples teto Por Liliana Lavoratti

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Muito mais que um simples teto
Por Liliana Lavoratti, de São Paulo
Mesmo ratificado por inúmeras nações por meio da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o acesso à moradia adequada não é uma realidade para todos. Bilhões de pessoas vivem em condições precárias no mundo, inclusive nos países ricos. No Brasil, esse direito está assegurado também pela Constituição, mas o déficit habitacional é estimado em cerca de 7,9 milhões de lares
Ele fez parte do elenco do premiado filme Quem Quer ser um Milionário, um conto de fadas moderno e de final feliz. Mas Azharuddin Ismail, ator de nove anos que fez a versão mais jovem do irmão do protagonista do longa, continua sentindo na pele a realidade vivida indiscriminadamente pelos pobres sem-teto do planeta: em meados de maio ele voltou a morar nas ruas após ter o barraco onde morava destruído. Ismail contou que estava dormindo quando um policial o acordou e ordenou que saísse do barraco. Imagens do despejo forçado mostraram o estrago causado pelos tratores que demoliram as moradias. A mãe dele disse que não havia recebido nenhum aviso prévio sobre o despejo.
A relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para a Moradia Adequada, a brasileira Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), observa que Ismail é apenas um entre milhares de crianças afetadas por despejos forçados no mundo todo ano. "Essas notícias devem nos lembrar dos graves impactos que despejos forçados têm na vida dessas crianças e de suas famílias. Eles acontecem rotineiramente de forma ilegal e em desrespeito a tratados internacionais de defesa dos direitos humanos. A prática é disseminada e afeta pessoas tanto em países desenvolvidos quanto em desenvolvimento", enfatiza em comunicado a governos, agências, instituições financeiras internacionais, corporações, locadores e proprietários, conclamando as nações a cumprir com suas obrigações internacionais e usar todos os meios necessários para proteger, promover e realizar o direito à moradia adequada.
Os "Ismail" teriam dias melhores se os países onde vivem cumprissem seus deveres de Estado. Como a emergente Índia, o Brasil também ratificou os dois instrumentos legais internacionais da ONU que asseguram o direito à moradia: a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948 - "toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, moradia, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis" (artigo 25) - e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos e Sociais e Culturais (Pidesc), adotado em 1966. Os 138 Estados-Parte desse Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à moradia adequada e comprometem- se a tomar medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito.
No caso brasileiro, o direito à moradia está mais do que assegurado no papel - na Constituição de 1988 e legislações posteriores, incluindo o Estatuto da Cidade e a garantia da função social das cidades e da propriedade. Este tema foi objeto de estudo recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que faz um balanço dos 20 anos da Constituição de 1988 em diversas áreas [leia mais no box As garantias na legislação e indicação do livro na seção Estante]. Frente ao perfil político das constituições anteriores, orientadas preponderantemente por valores liberais (1891), corporativistas (1934), desenvolvimentistas (1946) ou autoritárias (1937 e 1967) acerca das funções do Estado, a Constituição de 1988 é considerada por muitos como a "Constituição cidadã", devido aos avanços significativos no que se refere aos direitos sociais, observa Valdemar Araújo, professor do Departamento de Ciência Politica da Universidade Federal da Bahia e pesquisador visitante do Ipea.
No artigo sexto do capítulo dedicado aos direitos sociais, está explicitado que "são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição". "Trata-se de uma ampla gama de direitos que envolvem não apenas as políticas sociais em seu sentido mais restrito, mas também grande parte das denominadas políticas urbanas, como habitação, saneamento e transporte urbano, incluídas dentro do conceito de direito à moradia em sentido amplo e tidas pela Constituição de 1988 como serviços públicos de caráter essencial", sublinha Araújo.
Entretanto, os avanços ocorridos na legislação de direito à moradia a partir da Constituição de 1988 não se traduziram em avanços concretos nas condições de habitação e acesso a serviços urbanos da população brasileira. "Os resultados estão aquém do esperado, a começar pelo déficit habitacional estimado em cerca de 7,9 milhões de moradias. Ainda existe no País um conjunto de necessidades habitacionais não satisfeitas, que configuram violações do direito à moradia, afetando, sobretudo, as camadas mais pobres da população e os residentes em assentamentos humanos precários. Nas zonas urbanas brasileiras ainda há 54,6 milhões de brasileiros que convivem com pelo menos um tipo de inadequação habitacional", frisa Maria da Piedade Morais, coordenadora de Estudos Setoriais Urbanos do Ipea. (continua no site link acima)

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